Já fui melhor nisso. Uns dez anos atrás, eu era um apreciador de vinhos. Na época, isso era uma espécie de moda, e, de todos os vinhos, o que eu menos apreciava era o chileno. Talvez em razão do meu paladar mais voltado para uvas do tipo Malbec, produzidas na Argentina em sua maioria. Mas, logo após uma endoscopia de rotina, minha gastrite disse chega, e eu, resignado, tive que decidir entre deixar os vinhos ou viver à base de antiácidos. Então deixei de enxergar a vida com o brilho avermelhado de um brinde ou, como costumo dizer, “a seco”.
Talvez minha não apreciação etílica ou minha falta de vontade de percorrer os vinhedos do Chile se devesse ao fato de no meu inconsciente percebê-lo como um país sem graça e frio, muito dentro da ortodoxia neoliberal amarga. Sempre imaginei suas estruturas encharcadas do capital ante o social protetor que banhou toda nossa América Latina nos últimos anos, na luta contra a desigualdade social. Ah, mas o Chile sempre foi o exemplo, tudo privatizado, nada, nada mesmo de Estado, na saúde pública, nada de Estado, e o pouco que há sempre foi pior que o SUS, na previdência, nada de Estado, e o povo sempre ao reboque do país colocado como exemplo, como se fosse um bom menino da classe, estudioso, aquele que nossa professora usa de exemplo e em quem deveríamos nos inspirar.
Isso me lembra um professor da Faculdade de Direito que, nas aulas de Direito Penal, ao falar dos crimes contra a vida, sempre observava, antes de condenar o comportamento da vítima, aquela história do sujeito bonzinho que todo dia ia comprar pão na padaria. Quando chegava, o padeiro o chamava de “corno” e os bêbados riam. Todo dia era isso. Um belo dia o bonzinho não aguentou e, quando foi chamado de “corno”, descarregou seu revólver. Será isso o Chile? O país exemplo tão citado por Paulo Guedes e outros? O povo tão cheio de capitalismo e sem Estado “resolveu descarregar seu revólver”?
A grande verdade é que, como diziam os romanos antigos, “a virtude está no meio”. Sempre acreditei na iniciativa privada civilizada, mas nunca acreditei em um Estado omisso ou na extinção do Estado em seu papel equalizador como instrumento de combate às desigualdades sociais.
A rebelião assustadora no Chile por um simples aumento de preço nas tarifas do transporte parece desproporcional e ainda não foi digerida, nem por mim nem por ninguém. Foi bom não ter apreciado durante muitos anos o amargo paladar chileno. Que sirva de lição o mau exemplo para que se tenha em mente que um dia as premissas privatizantes estouram em “balbúrdias”, e o desencanto seja o prenúncio do caminho errado que podemos trilhar.
Nunca apreciei os vinhos chilenos, por serem mais amargos, apesar de a embalagem ser mais atraente..
*É advogado, jornalista, mestre em Direitos Fundamentais
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