Os EUA estão em chamas. Não são somente os prédios que ardem ali. Nas ruas de Nova York, Minneapolis, Atlanta e tantas outras cidades construídas, literalmente, sobre os ossos de escravizados, negros e negras queimam o mito fundante de um país livre e igual.
“Os ideais fundadores da nossa democracia eram falsos quando foram escritos. Foram os negros americanos que lutaram para torná-los realidade”, escreveu no ano passado Nikole Hannah-Jones.
Reencena-se a violência racial como espetáculo. Hoje e outrora. 1921, Tulsa, Oklahoma. Aviões particulares jogam bombas sobre comércios na chamada Black Wall Street, destruindo dezenas de quarteirões e matando centenas de pessoas negras.
1963, Birmingham, Alabama. Bombas contra líderes de direitos civis eclodem. Protestos são massacrados pela polícia. Uma foto brutalmente icônica mostra um policial com o joelho enforcando uma mulher negra. Semelhança sombria com a cena de George Floyd sendo assassinado em Minneapolis no último dia 25.
Da prisão em Birmingham, escreveu Martin Luther King em 16 de abril de 1963: “Sabemos por meio de experiências dolorosas que a liberdade nunca é voluntariamente concedida pelo opressor; ela tem de ser exigida pelo oprimido”.
Se há pessoas nas ruas hoje nos EUA e também em São Paulo e no Rio neste domingo (31), é para demandar a liberdade que nunca nos foi dada.
Que fique claro: o que se vê hoje nos EUA não é um problema dos negros, tal como racismo não é um problema de negros. Enquanto considerarmos violência policial contra negros como um desvio de conduta e não como a reencarnação da própria função de controle social para as quais as polícias foram originalmente criadas, não teremos entendido coisa alguma.
Diferenças à parte, polícias nos EUA e aqui foram criadas, originalmente, para controlar negros. Nos estados sulistas dos EUA a origem da polícia remete às Patrulhas de Escravos, a primeira delas de 1704.
Gary Potter conta que a principal função dessas patrulhas era perseguir escravos em fuga. Nos estados do norte do país, o policiamento se iniciou com patrulhas noturnas, privadas, para proteger a propriedade.
No Brasil, Thomas Holloway descreve, no clássico “Polícia no Rio de Janeiro: Repressão e Resistência numa Cidade do século 19”, os primórdios da Intendência Geral da Polícia e da Guarda Real da Polícia nos séculos 18-19.
“A polícia era um exército permanente travando uma guerra social contra adversários que ocupavam o espaço a seu redor” para coibir “atos subversivos como fugir ao controle de seu dono e se recursar a trabalhar.”
Pós-abolição, o documento fundante de nossa República não foi uma carta de direitos, mas sim o código penal de 1890 para controlar a população recém-liberta.
Tecnologias modernas de policiamento estão ancoradas na ideia de controle ostensivo de territórios e pessoas negras.
Políticas de policiamento nos EUA como “Broken Windows” (janelas quebradas), focada em policiar pequenas desordens sociais como pessoas embriagadas na rua; política de “stop-and-frisk”, baseada na expansão de abordagem policial mesmo quando não há clara suspeita de haver um crime em curso; e as chamadas “patrulhas verticais” de prédios em bairros negros servem ao único propósito de controlar negros.
Floyd foi morto em abordagem policial por suposto uso de nota falsa, um crime menor não violento. Eric Garner foi morto em 2014 por vender cigarros ilegais na rua. Breonna Taylor foi morta em março deste ano em casa enquanto a polícia patrulhava seu prédio.
A polícia no Rio de Janeiro em 2019 matou quase o dobro do que a polícia dos EUA no país inteiro. Pergunta que deveríamos estar nos fazendo não é quão brutal é a polícia contra negros, mas para que brancos precisam de um sistema de brutalidade policial para manter negros subalternos.
Hoje, jovens negros e talentosos, como cantava Nina Simone, estão queimando as ruas dos EUA demandando justiça. O mito da democracia americana já estava em chamas desde aquele agosto de 1619 quando o primeiro navio de escravos atracou na costa da Virgínia.
Que queime o passado para nos permitir construir o futuro, juntos.
*É advogado, é professor de políticas de diversidade na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos humanos e discriminação. Artigo publicado no site Geledes, em 01/05/2020
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