De todos os importantes e variados episódios de protestos, insurreições populares e explosões de insatisfação política que vêm sacudindo partes da América Latina, com exceção do Brasil, a mais violenta, surpreendente e não à toa massiva é a que levou mais de um milhão de pessoas às ruas de Santiago na sexta-feira passada.
Foi a maior manifestação de rua da história do Chile: 6% de toda a população do país superou anos de relativa passividade e o medo. Antes de intimidar, a revolta foi incentivada pela sucessão diária de cenas chocantes de repressão mostradas nas TVs e dirigidas em particular contra jovens de incrível resiliência. Foi uma evidente vitória das informações circulando via internet e redes sociais contra os meios corporativos tradicionais, todos apoiadores do governo de Sebastian Piñera.
O Exército nas ruas de novo evoca momentos de um passado sombrio e traumático na história chilena, em especial o golpe de 11 de setembro de 1973, com o bombardeio do palácio de La Moneda e a morte de Salvador Allende. A revolta do Chile, olhada contra esse pano de fundo histórico mais largo, ganha outros contornos. O presente, para dar conta de seus desafios, lembra, reencena e reconfigura o passado. As manifestações ganham um sentido temporal vertical e vertiginoso.
Dos movimentos sul-americanos recentes (que incluem Equador, Peru e Bolivia, num certo sentido), o processo chileno é o que evoluiu de maneira mais acelerada, a ponto de já assumir o caráter tendente a uma revolução. Este processo associa elementos de rápida generalização, com adesões de diferentes classes e com bandeiras de muitos diferentes níveis. Veja como foi essa evolução: do disparo inicial provocado pela aversão ao aumento de passagens de transportes, passou-se ao repúdio à violência repressiva, daí em diante o movimento popular trafegou para a rejeição ao massacre econômico social neoliberal e desdobrou-se na recuperação histórica inclusive da memória da identidade dos povos originários sul-americanos, como os mapuche.
Finalmente, o movimento iniciado por jovens e estudantes parece apontar para um questionamento às bases do regime político e à Constituição herdada do regime do general Augusto Pinochet.
Passados dez dias de protestos e conflitos restou um saldo de sangue e dor, com ao menos dezoito mortos, centenas de feridos e desaparecidos.
O governo conservador de Sebastian Piñera experimentou um momento inicial de gozo com essa repressão, sendo levado em seguida ao desespero, com a anunciada queda de todo o ministério. Desatou-se uma energia popular represada cuja existência nesses níveis ninguém suspeitava. A radicalização superou qualquer cálculo e transbordou em forma de furor popular.
O vulcão andino, insuspeitado, adormecido após a transição para a democracia em 1990, sob o peso dos 17 anos de tragédia histórica sufocada desde o governo socialista do médico Salvador Allende (um nome cuja menção era proibida), irrompeu agora espetacularmente.
Mesmo os governos de frente democrática da chamada Concertación, na verdade, mantiveram a impunidade dos violadores de direitos humanos e não chegaram a romper com o arcabouço constitucional e hierárquico legado pelo governo militar.
É significativo que a revolta social ocorra no país que é considerado a Meca da ordem neoliberal no continente. O Chile tornou-se o exemplo de utopia capitalista bem-sucedida a ser seguida por todos os seus vizinhos. Economistas da escola ultraliberal da Universidade de Chicago sempre aludem ao modelo chileno como o paradigma a ser imitado, por sua recusa à presença do Estado na economia, a privatização selvagem dos serviços públicos. O país tornou-se um poço de virtudes a ser copiado por todos, um preferido dos especialistas, analistas, consultores e entendidos de todo o tipo acionados todo o tempo pela mídia conservadora.
O reultado é que no Chile até mesmo a pesca e a água estão reservadas ao domínio e à propriedade de empresas privadas. Os exemplos são bizarros. O extenso litoral chileno foi inteiramente dividido em oito faixas de pesca exclusiva das empresas proprietárias dos produtos do litoral. Os pescadores individuais são obrigados a fornecer o produto de seu trabalho para essas empresas.
Quanto à água, o monopólio ganha contornos de caricatura ainda mais cruel. Toda a água do país é propriedade exclusiva de uma empresa privada, o que inclui a água do subsolo, e, pasme, até mesmo água da chuva armazenada por particulares.
O modelo inclui, é claro, a privatização radical da previdência social pelo sistema de capitalização, da educação e da saúde. Esse edifício de dinâmica religiosa e delirante, em que o capital aspira a maximizar seus lucros penetrando e extraindo mais valia de todos os espaços da vida, está em questão no lugar onde ele foi levado às últimas consequências. Essa hora da verdade obriga todo um país e arrasta seus vizinhos do continente a refletir sobre o que é a ordem neoliberal, ao mesmo tempo em que se ocupa de exorcizar os fantasmas de seus mártires insepultos e que insistem em voltar do passado.
*É jornalista. Foi ombudsman da Folha e do portal iG, secretário de Redação e diretor da Sucursal de Brasilia da Folha. Artigo publicado originalmente no site Brasil 247, em 27/10/2019.
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