Você sabe quem foi Nise da Silveira? A pergunta foi feita a uma estudante de jornalismo, muito bem informada e socialmente engajada. A resposta sincera foi: “não!”.
Exatamente como eu esperava. A maioria dos alagoanos não conhece a história da médica conterrânea que revolucionou a psiquiatria brasileira, humanizando o tratamento de doentes psicóticos com a implantação e comprovação da eficiência de métodos de terapia ocupacional baseados na manifestação artística, contrapondo-se aos tratamentos agressivos de eletrochoques, camisas de força e isolamentos impostos aos pacientes internados nos hospitais psiquiátricos da década de 1940 e demais.
Fiz essa pergunta no dia em que Prefeitura de Maceió inaugura, no Corredor Vera Arruda, no bairro da Jatiúca, uma escultura em homenagem a Nise da Silveira. Merecida homenagem – e até diria, atrasada, sem descreditar o mérito de quem plantou e defendeu a ideia na Fundação Municipal de Ação Cultural (Fmac), administrada por Vinicius Palmeira. Sou daquelas que, no mais tardar, ainda consegue dizer: antes tarde do que nunca. Porém, vou mais além. Mais que uma estátua de bronze, é preciso levar os alagoanos a conhecerem melhor a história de seus heróis e heroínas. E isso pode ser uma tarefa escolar.
Com a escultura plantada em praça pública, Nise se equipara a outros alagoanos ilustres como Graciliano Ramos, Aurélio Buarque de Holanda e Paulo Gracindo, cujas imagens – todas esculpidas pelo mesmo artista plástico Leo Santana – já proseiam com o belo cenário público da capital alagoana. E mais uma vez ela faz valer o seu pioneirismo. É a primeira mulher a constar nessa galeria aberta de memória traduzida em estátuas de bronze, nos espaços públicos de Maceió.
E quem sabe alguém olhando para aquela senhora de óculos redondos, cabelos em coque, aspecto franzino e olhar adiante, pergunte:
QUEM FOI ESSA MULHER?
Lá vai textão!
Alagoana de Maceió, Nise da Silveira nasceu em 1905, filha do jornalista e professor de matemática Faustino Magalhães da Silveira e de Maria Lídia da Silveira. Estudou no Colégio Santíssimo Sacramento e, na década de 20, ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia – única mulher entre 157 estudantes – tornando-se, posteriormente, uma das primeiras mulheres formadas em medicina no Brasil. Sua tese de colação de grau já mostrava seu engajamento nas causas sociais: “Ensaio Sobre a Criminalidade da Mulher no Brasil” (1926).
Aprovada em concurso, ingressou no serviço público em 1933, passando a trabalhar no Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental, na Praia Vermelha, pertencente da antiga Divisão de Saúde Mental.
Casou-se com o médico sanitarista Mário Magalhães, seu conterrâneo e colega de faculdade, com quem dividia os ideais humanitários na área de saúde e a militância política, que resultaram na sua prisão, por quase dois anos, no período duro da ditadura de Getulio Vargas. Diz a história que uma enfermeira denunciou seu gosto pela literatura marxista.
No presídio, conviveu com Olga Benário e conheceu o escritor Graciliano Ramos, também preso político na unidade prisional Frei Caneca, no Rio de Janeiro. Sobreviveu ao regime e trouxe na bagagem, ao sair da prisão, a experiência dolorosa da tortura sofrida e vivenciada, que não queria para si nem para qualquer ser humano.
IMAGENS DO INCONSCIENTE
Reintegrada ao serviço público em 1944, no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II (hoje Instituto Municipal Nise da Silveira), no Rio de Janeiro, defendeu com firmeza seu posicionamento oponente ao uso de métodos agressivos (não muito diferentes da tortura vivida nos presídios políticos) usados no tratamento de esquizofrenias e outras doenças psíquicas. Isso lhe rendeu atritos com alguns colegas e a transferência para a seção de ‘Terapia Ocupacional’, cuja atividade terapêutica limitava-se, à época, aos serviços de limpeza e manutenção da unidade de saúde.
Transformou o ambiente, e ao invés de vassouras e louça suja pra lavar, entregou pinceis, tinta e telas em branco aos pacientes sob sua custódia; ao invés das salas de isolamento e eletrochoques, criou ateliês de arte para ocupar os mais agitados; e junto com tudo isso, deu a eles o respeito, o afeto e a liberdade para exercer a criatividade e dar asas à imaginação. Resultados impressionantes – no comportamento e na produção – que além de confirmarem a eficiência da nova terapia, geraram obras de modelagem e pintura que ilustraram teses e obras literárias de Nise e de outros psiquiatras, ganharam projeção nacional e transformaram-se em matéria prima para o Museu de Imagens do Inconsciente, fundado por Nise da Silveira, no Rio de Janeiro.
Hoje, o acervo conta com mais de 360 mil obras – considerada a maior e mais diferenciada coleção do gênero no mundo, com peças tombadas pelo IPHAN – e guarda também a biblioteca e o arquivo pessoal de sua fundadora. É reconhecido pela Unesco com o registro no Programa Memória do Mundo. Incansável, Nise criou também, na década de 1950, a Casa das Palmeiras, o primeiro centro de atividades voltado para a inserção social de pacientes psicóticos em regime aberto no Brasil.
Seu trabalho e suas ideias inspiraram a criação de outros espaços e instituições terapêuticas em diversos estados do Brasil e no exterior, a exemplo do Núcleo de Atividades Expressivas Nise da Silveira, do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre/RS; a Associação de Convivência Estudo e Pesquisa Nise da Silveira (Salvador/BA); o Centro de Estudos Imagens do Inconsciente, da Universidade do Porto (Portugal); a Association Nise da Silveira – Images de l’Inconscient” (Paris); o Museo Attivo delle Forme Inconsapevoli (hoje Museattivo Claudio Costa) (Genova, Itália).
Em Alagoas, são poucas homenagens públicas. Identifiquei uma escola municipal que leva o seu nome e a comenda Nise da Silveira, instituída pelo governo do Estado na era Ronaldo Lessa (com a qual já tive a honra de ser homenageada).
Nise da Silveira não foi apenas uma mulher à frente de seu tempo. Com firmeza, determinação e grande sensibilidade humana, ela revolucionou a forma como doentes mentais eram tratados e deixou seu nome como referência na psiquiatria brasileira e mundial.
Faleceu em 1999, aos 94 anos, em decorrência de uma pneumonia.
O CORAÇÃO DA LOUCURA
Ah. Vai uma dica para conhecer um pouco mais da história fascinante dessa mulher: O filme “Nise – O coração da Loucura”, estrelado por Glória Pires e dirigido por Roberto Berliner é um bom começo. Não está mais no circuito dos cinemas – foi lançado em 2016 – mas pode ser encontrado nos canais fechados.
Vale a pena assistir!
*É jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Alagoas (Sindjornal), blogueira do site É Asssim, no qual este artigo foi originalmente publicado em 30/07/2019
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