“A vida de cigano é uma vida corriqueira, uma vida desalojada”. A afirmação é de seu Francisco Ferraz, o patriarca de um grupo de ciganos que, há cera de 10 anos, fixou moradia no município de Carneiros, no Sertão de Alagoas, após uma vida de migração, pobreza e preconceito por várias cidades do Nordeste.
A vida “corriqueira” e “desalojada” do seu Francisco terminou este ano, quando ele morreu de causas naturais, deixando órfãos de patriarca seus filhos, netos, bisnetos, noras, genros e a esposa, dona Maria das Graças.
Meses antes de falecer, ele recebeu a reportagem do Correio Notícia em seu “rancho”, montado num terreno na zona urbana da cidade de Carneiros, e falou um pouco sobre suas andanças pelo Nordeste e suas experiências como filho, neto e líder de ciganos.
Como nunca teve moradia fixa antes de se instalar no pequeno município sertanejo, seu Francisco nunca soube o que é morar numa casa de alvenaria, ter vizinhos nem endereço fixo. Por essa mesma razão, ele e a esposa – que após a morte dele vive com familiares em Carneiros– nunca frequentaram a escola e eram analfabetos.
Não sabiam a idade – apesar de aparentarem ter mais de 80 anos – nem quantos filhos tiveram. “São mais de 10 aqui com a gente”, sugeriu seu Francisco sobre a quantidade de filhos que viviam com eles no “rancho” formado por barracas de lona.
Somando os netos, bisnetos, genros e noras, o grupo chega a cerca de 200 pessoas, todas parentes entre si e com algum grau de parentesco com o seu Francisco e a dona Maria, que eram os líderes do grupo e estavam casados, segundo eles, há 50 anos.
Nascidos na Bahia, seu Francisco e dona Maria viram a família crescer em cada parada, em cada estado. Entre eles, há alagoanos, sergipanos, baianos e pernambucanos.
Dona Maria das Graças e seu Francisco Ferraz, meses antes de morrer, contaram um pouco sobre suas experiências de vida (Foto - Diego Barros) |
Nessa vida “corriqueira” e “desalojada”, os ciganos também não sabem o que é a solidão, pois optam por morar todos juntos. Assim, vão mantendo suas tradições e encarando unidos o olhar de reprovação e preconceito de uma sociedade que, na maioria das vezes, não sabe conviver com as diferenças.
Porém, um dos motivos que levou o grupo a fixar moradia no município de Carneiros, segundo seu Francisco, é que lá “o povo é bom, não persegue”. O outro motivo para o fim do nomadismo – pelo menos por enquanto – foi o programa Bolsa Família.
Quando concedeu entrevista à reportagem do Correio Notícia, seu Francisco disse que se sentia feliz e acreditava na vontade de Deus e de “pessoas particulares” para conseguir melhorias, porém, ele afirmou que sentia falta do passado porque “antigamente a gente tinha mais liberdade”. Liberdade de quê? “De andar, de negociar, de fazer seus ‘pranos’”.
Nessas andanças pelo Sertão, seu Francisco contou que “topa bom aqui, ruim ali” e também que já passou muita fome. “Toda família de cigano já passou fome”, afirmou. “Mas ainda ‘tamo’ feliz, que ‘tamo’ perto dos homens”, observou, sobre viver na mesma cidade há cerca de dez anos.
“O cigano foi uma nação desprezada”
Seu Francisco conheceu o mundo, mas o mundo não quis conhecê-lo. Essa falta de conhecimento sobre o modo de vida e as tradições ciganas estão nas raízes do preconceito e da invisibilidade que eles sempre tiveram não só perante a população, mas – ainda mais grave – perante os governantes.
Por isso, o patriarca disse que “o cigano foi uma nação desprezada”. “O governo podia ter ajudado. O que nós temos é dado por Deus e pelos homens, mais do que pelo governo. O cigano é desatendido, tem o atendimento de Jesus Cristo e de uma pessoa particular que queira ajudar”, salientou o patriarca do grupo. “Nós somos ‘eleitor’, ajuda os prefeitos, os deputados, e eles como não olham pra gente?”, questionou, com lucidez, seu Francisco.
A vida mudou um pouco há alguns anos após a inclusão de alguns membros do grupo no programa Bolsa Família e de seu Francisco e da esposa no programa de Benefício de Prestação Continuada (BPC), por meio do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS).
Porém, de acordo com o cigano Batista Ferraz de Alencar, de 32 anos, a vida das cerca de 200 pessoas do grupo continuava difícil. Segundo ele, as principais atividades para gerar renda são “uma lida de mão, alguma atividade como diarista nas roças de outras pessoas e os negócios de trocas ou compra e venda de aparelho de som, motos e relógios”. Nenhum deles tem emprego fixo.
A “lida” ou leitura de mão, como citou Batista, é realizada pelas mulheres do grupo, quando andam de porta em porta na cidade de Carneiros e em cidades vizinhas, bem como pelas feiras de rua, oferecendo esse serviço.
Batista Ferraz conta que a leitura de mão e a troca de equipamentos eletrônicos estão entre as fontes de renda dos ciganos (Foto - Diego Barros) |
“Os meios de vida nos outros governos eram mais difíceis. Hoje em dia a gente tem o Bolsa Família que dá ‘pra’ ir merendando, se habituar e ficar num lugar só. No passado a gente não ficava num lugar só porque não tinha um meio de vida”, explicou Batista Ferraz. Antes de chegar a Carneiros, o grupo passou uma temporada no município de Dois Riachos, também no Sertão alagoano.
Por meio do município de Carneiros, as crianças e jovens do grupo estudam nas escolas da rede municipal, todos têm acesso à rede de saúde usada pelos demais moradores da cidade, recebem a visita de um agente de saúde, frequentam médicos, dentistas, realizam exames e recebem remédios.
“A gente dá a assistência que a gente pode”, citou a secretária municipal de Assistência Social, Margarida Nobre. Segundo ela, a Prefeitura de Carneiros tem um projeto para construção de 40 casas populares que, quando forem construídas, serão doadas aos ciganos. Porém, o projeto ainda aguardava a liberação de recursos pelo governo federal.
Por outro lado, de acordo com a secretária e com os próprios ciganos, ainda é muito marcante a ausência do Estado e do governo federal com ações de promoção e valorização do grupo, geração de oportunidades de trabalho, renda, capacitação ou defesa de seus valores e princípios culturais. É por essa razão que o líder do grupo, seu Francisco, afirmou que “o governo nunca fez parte do cigano”.
Grupo não recebe ações sociais e culturais
A reportagem manteve contato com três Secretarias de Estado que trabalham com as áreas social e cultural para saber se existem ações em execução voltadas especificamente para os grupos de ciganos.
A Secretaria de Assistência e do Desenvolvimento Social (Seades) informou, por meio de sua assessoria de comunicação, que não possuía nenhuma ação em andamento ou executada para os povos ciganos, mas ressaltou que trabalhava para ampliar o cadastro da população em geral junto ao Cadastro Único (Cadúnico), o que permite o acesso a diversos programas e benefícios sociais. A assessoria informou ainda que a Seades é uma secretaria-meio, ou seja, de articulação, e que tem realizado um trabalho mais próximo de outras minorias étnicas, como indígenas e quilombolas.
Já a Secretaria de Estado da Cultura (Secult) informou, também por meio de sua assessoria, que não possuá nenhum projeto voltado especificamente para os grupos ciganos. De acordo com a nota enviada pela assessoria, a Secult, através da Superintendência de Identidade e Diversidade Cultural, trabalhava em projetos que atendiam aos vários segmentos e manifestações tradicionais.
“A nova gestão está realizando um mapeamento para um levantamento regional de segmentos culturais. A Secult lançou o programa ‘Fomento e Incentivo à Cultura em Alagoas (Fica)’, que tem como objetivo democratizar o acesso a recursos e investimentos, estimular a produção cultural alagoana e valorizar ações e projetos que resgatem e fomentem as diversas manifestações populares”, dizia a nota da pasta da Cultura.
Outra secretaria procurada pela reportagem foi a da Mulher e Direitos Humanos. De acordo com a superintendente de Direitos Humanos da pasta, um cadastramento dos grupos de ciganos seria realizado para, a partir daí, identificar as demandas. Segundo ela, a secretaria tem total interesse em conhecer melhor e em atender às necessidades desses povos, por meio de articulações.
Porém, segundo ela, os próprios representantes dos ciganos não têm demonstrado interesse em participar de reuniões e eventos propostos pelo governo.
A secretária municipal de Assistência Social de Carneiros, Margarida Nobre, destacou que os ciganos já receberam diversas visitas de autoridades e técnicos do Estado, foram cadastrados, já responderam a vários questionários do governo federal e de instituições financeiras que “construiriam casas para eles”, porém, segundo ela, até agora nada de concreto foi feito.
Para o presidente da Comissão da Promoção da Igualdade Social da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-AL), advogado Alberto Jorge Ferreira, o governo precisa formalizar e executar uma política pública específica para os ciganos. “A filosofia de vida desses povos é diferente, por isso, é preciso mudar a filosofia de trabalho. Os poderes públicos estadual, municipais e federal precisam chegar junto desses grupos”, defendeu.
Segundo ele, deveriam existir políticas públicas para ciganos assim como existem para negros e indígenas, por exemplo. “As políticas públicas devem também salvaguardar a cultura dos povos ciganos”, apontou o advogado.
Católica, dona Maria das Graças mantém imagens de santos e ajuda a preservar a tradições do grupo (Foto - Diego Barros) |
Falta de mobilização política é entrave na relação com o governo
Estudante de Mestrado da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) sobre as relações espaciais e familiares dos ciganos que vivem em Carneiros, a socióloga Leila Samira Portela, que também é especialista em Antropologia, acredita que a falta de mobilização política dos ciganos atrapalha na negociação de suas demandas com os governos.
Segundo ela, não só em Alagoas, mas também fora do estado, os ciganos são vítimas de relações locais, ainda personalistas, com os prefeitos e vereadores dos municípios onde vivem. “Afinal, hoje os ciganos são eleitores. A visibilidade dos governos para as pautas e reivindicações ciganas é bastante recente, e a falta de mobilização política nesse sentido também atrapalha bastante”, comentou Leila Portela.
“A luta desses grupos está apenas começando e o processo será grande e cheio de altos e baixos”, avalia a socióloga. Para ela, por não estarem organizados politicamente como os quilombolas e os indígenas, ainda não há uma unidade entre as lideranças ciganas, fazendo com que as ações em conjunto sejam bastante difíceis. “A luta destes grupos em busca de direitos, embora incipiente, tem caminhado”, analisou a pesquisadora.
Por outro lado, segundo ela, a inclusão recente dos ciganos nos programas sociais do governo, como o Bolsa Família, é muito importante para a fixação e também para a dignidade desse povo. “Esses programas foram primordiais também para a saúde de mulheres e crianças, sua frequência na escola, etc. As mulheres ciganas não podem trabalhar e, de acordo com a cultura, a única forma de renda dessas mulheres era ler a mão nas ruas ou pedir alimentos de casa em casa”, detalhou.
“Muita gente reclama que elas são insistentes, isso se dá porque essa era sua única fonte de renda, a possibilidade de levar algum dinheiro para casa. Com esses programas do governo, esse quadro mudou, o que acabou tendo um impacto bastante positivo na vida dessas mulheres e das crianças”, ponderou Leila Portela.
Leis garantem dignidade para ciganos, mas realidade está longe da adequada
O colchão e os cobertores ficavam no chão de terra batida, o fogo de carvão estava logo ali ao lado, o pote que acumulava a água de beber também. Numa rústica estrutura de madeira, ficavam algumas panelas e uma bacia com água que servia para lavar os pratos. A barraca de lona não devia ter mais que sete ou oito metros quadrados e seu interior guardava algumas caixas com pertences e era decorado por imagens de santos e santas do catolicismo.
Quente no verão e pouco confortável no inverno, esse era o “lar” de seu Francisco e dona Maria das Graças, no rancho, onde ele faleceu. No entorno, entre as barracas de lona dos demais membros do grupo, as mulheres lavavam roupa no chão, com água de algumas bacias e baldes, e usavam estrutura de madeira semelhante a uma mesa para lavar os pratos e as panelas. As roupas secavam em varais improvisados e, apesar de algumas barracas possuírem fogão a gás, eles não dispensavam o fogo de carvão ou lenha, por ser mais barato.
A água que os ciganos usavam era captada em duas torneiras que ficavam na entrada do terreno, que foi comprado e estava em nome do patriarca, seu Francisco. No local também havia energia elétrica e, por isso, algumas barracas tinham televisão e antena parabólica. Para as crianças, quando não estavam na escola, havia o jogo de futebol e um balanço amarrado embaixo de uma árvore.
De acordo com a pesquisadora Leila Portela, que já visitou o grupo cigano de Carneiros para elaborar sua pesquisa no curso de Mestrado da Ufal, a Constituição Federal de 1988 significou importantes avanços no reconhecimento das minorias étnicas, mesmo não citando expressamente os ciganos. “O texto democrático abriu espaço para que eles fossem incluídos na classificação de ‘minorias étnicas’ através da Lei Complementar nº 75, de 20 de maio de 1993, o que possibilitou que o Ministério Público Federal ampliasse a proteção e defesa dos seus interesses, antes exclusivo às comunidades indígenas”, pontuou.
Porém, apenas em 2002, segundo ela, iniciaram-se as discussões sobre a etnia cigana, seu acesso aos direitos sociais e a sua inclusão no Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH). “A partir daí vieram algumas conquistas legais, principalmente a partir de 2006 alguns dispositivos começaram a ser editados a favor da qualidade de vida e respeito a essa minoria étnica”, frisou Leila Portela.
Porém, apesar de todas essas garantias legais, a realidade dos ciganos não só de Carneiros, mas de outras localidades, ainda é difícil. Eles vivem em condições de miséria, sem acesso a serviços sanitários e poucos de seus direitos são respeitados.
Preconceito ainda marca a vida do povo cigano
Tanto seu Francisco, líder do grupo, quanto o cigano Batista Ferraz disseram que já foram vítimas de preconceito simplesmente por serem ciganos. “Já sofremos muito, principalmente quando a gente andava assim pelo mundo, porque não existia confiança como existe mais um pouco hoje. Aqui todo mundo sabe o que a gente faz, aí há aquela confiança. Quando a gente andava perambulando, era diferente. Tinha preconceito porque as pessoas não conheciam, tinham aquela lenda, aquele mito, não conheciam a cultura, não conheciam a gente, aí ninguém vai tirar o direito deles também. Aí julgavam a gente, discriminavam, mas hoje em dia nós ‘tamo’ no meio da sociedade, a gente vota, estuda, faz tudo”, tentou explicar Batista sobre as razões pelas quais foram vítimas de preconceito.
Para a pesquisadora Leila Portela, vivemos em uma sociedade fundada na diferença, formada por várias "raças", etnias e culturas, mas não somos ensinados a lidar com essa diversidade. “Somos acostumados a tentar homogeneizar tudo e temos enorme dificuldade em lidar com as diferenças. Grande parte do preconceito contra ciganos vem da ignorância, do desconhecimento acerca dos seus costumes e modo de vida. Eles são um povo até hoje invisibilizados, tanto que existem ciganos em Alagoas e muitos de nós nem sabemos que eles existem”, assinalou.
Para ela, “os ciganos convivem diariamente com o peso de uma representação social negativa, com um estereótipo e estigmas que os caracterizam como espertos, mentirosos, enganadores, ladrões, vagabundos, sem paradeiro, quando não, são vistos de forma romantizada e estereotipada, o que não ajuda em nada a situação de racismo e discriminação na qual vivem. Eles são constantemente alvo de suspeitas, pois são vistos como indivíduos potencialmente perigosos”.
Ela apontou ainda que os ciganos sempre são vistos como "nômades por natureza", por exemplo, mas geralmente a sociedade esquece que esse nomadismo, na maioria das vezes, foi forçado. “Os ciganos chegavam a lugares e não eram aceitos pela população, pela polícia, pelos políticos e eram obrigados a se retirar, até hoje é grande a dificuldade deles em conseguir pouso (lugar para se fixarem)”, citou.
Traços culturais marcantes resistem ao tempo e unem o grupo
Alguns têm olhos claros, cabelos alourados, outros são pardos de olhos negros. Quando conversam entre si, são poucas as palavras que quem não é do grupo consegue entender. Já quando conversam com alguém de fora, falam o português num sotaque bem característico, quase uma melodia pronunciada ao final de cada frase.
Para as mulheres, o casamento é arranjado pelos pais desde o nascimento e é feito com um membro do próprio grupo, geralmente um primo de primeiro ou segundo grau. Os homens, por outro lado, podem se casar com mulheres não-ciganas que queiram fazer parte do grupo.
As datas mais comemoradas por eles são as festas juninas e o Ano Novo. Todos são praticantes do catolicismo, vão à missa de vez em quando e guardam nas barracas de lona imagens de santos, entre eles o Padre Cícero.
Já as roupas femininas, sempre vestidos ou saias coloridas e compostas, distinguem as mulheres ciganas em qualquer lugar onde estejam. “Eu acho bonito, as mulheres daqui não se exibem muito, não se mostram, o corpo é coberto, não é que nem essas outras mulheres que se mostram e ficam quase nuas”, argumentou Batista Ferraz, cigano membro do grupo que vive em Carneiros.
Itamara da Silva Oliveira, uma das mulheres do grupo, é filha e neta de ciganos e disse gostar das roupas que usa. Ela explicou que os tecidos são comprados e as roupas são feitas por costureiras ou a mão mesmo por elas próprias.
Para a pesquisadora Leila Portela, que estuda os ciganos de Carneiros em seu Mestrado, “as relações com nós (não ciganos) também são importantes elementos de definição do que é ser cigano, ou seja, eles são o que nós não somos”. Segundo ela, eles fazem parte da etnia Calon e entre si falam o idioma conhecido como chib. “Essa linguagem já vem da tradição. Quando o cigano nasce, já nasce com essa linguagem”, explicou o cigano Batista Ferraz.
Ainda de acordo com a pesquisadora, no Brasil existem três etnias de povos ciganos: Rom, Sinti e Calon. Os que vivem em Carneiros, segundo ela, são marcados por alguns traços culturais específicos, entre eles: se identificam como parte do mesmo grupo, que é um grupo familiar; possuem uma origem comum, que são o seu Francisco e a dona Maria das Graças; têm um passado nômade; possuem parentes que vivem em Feira de Santana, na Bahia.
Outra característica apontada por ela é o pertencimento familiar. “O pertencimento familiar é muito importante entre os Calon. Uma das provas disso é que eles sempre andam em ‘bando’ e muitos não ciganos não entendem e sentem medo. Na verdade, para os Calon não existe sentido em ser sozinho ou viver sozinho. Um cigano só é cigano se estiver em família, por isso que sempre que encontramos ciganos eles estão em grupo. Na verdade, estão em família, são irmãos, primos, tios etc.”, analisou Leila Portela.
Porém, após a morte do seu Francisco este ano, o grupo se dividiu. Alguns membros alugaram casas na cidade de Carneiros, outros se mudaram do terreno onde o patriarca morreu e montaram o rancho em outra área, também no mesmo município.
Segundo a pesquisadora, reinvenção cultural deve manter os ciganos pelas próximas décadas (Foto - Diego Barros) |
Reinvenção cultural deve manter povos ciganos
Além de Carneiros, existem ciganos em Delmiro Gouveia, Arapiraca, União dos Palmares e Maceió, num total de mais de 200 famílias. Em todo o Brasil, são cerca de 300 acampamentos de grupos ciganos, entre nômades e sedentários.
Quando questionada se acredita na permanência dos povos ciganos e sua cultura nas próximas décadas, a pesquisadora Leila Portela citou o histórico de resistência deles.
“Eles possuem uma rica cultura e uma longa história de resistências: foram escravos na Romênia, perseguidos pelos nazistas (estima-se que 500 mil ciganos tenham sido assassinados em campos de concentração durante a II Guerra, além de todas as outras políticas anticiganas adotadas pelo governo nazista), foram alvos de punições, banimentos e constantes expulsões dos locais de pouso e das mais refinadas políticas persecutórias, diásporas, discriminações e preconceitos fruto de representações coletivas, estigmas e imagens negativas”, descreveu.
“Não é à toa que alguns estudiosos afirmam que o maior feito da cultura cigana foi ter resistido. Então, o que os ciganos mais têm feito durante séculos é justamente isso: resistir. Possuem uma rica cultura e está começando a haver um movimento de organização desses grupos para reivindicar seus direitos. Além disso, apesar de toda dificuldade, é característica das culturas se reinventar, elas não são fixas, se transformam e resistem, e os ciganos são a prova disso”, emendou Leila Portela.
Na visão dela, mesmo quando o ambiente é hostil e as condições são difíceis, os ciganos reinventam suas práticas, outros elementos de diferenciação surgem e a cultura se mantém, mesmo que transformada. “Eles sobreviveram a períodos difíceis, onde não havia nem seu reconhecimento como pessoas, onde não tinham direito nem a um registro de nascimento”, concluiu.
Aos ciganos da etnia Calon que vivem em Carneiros, apesar da perda do patriarca Francisco Ferraz, resta manter a cultura viva, o grupo unido e acreditar que a evolução da sociedade para o conhecimento faça com que as novas gerações não sofram do mesmo preconceito que eles sofreram. Ao mesmo tempo, eles aguardam que os governantes os enxerguem como cidadãos possuidores dos mesmos direitos, apesar de seus traços culturais peculiares.
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