“Mata branca” nunca serviu tão bem para traduzir a palavra Caatinga, de origem indígena, quanto agora, após 5 anos seguidos de chuvas abaixo da média no Sertão de Alagoas, onde esse bioma predomina.
Nos locais que ainda não sofreram degradação causada pela ação humana, a vegetação resiste à escassez hídrica, utilizando todas as estratégias de que dispõe a natureza. Em alguns trechos, a tonalidade acinzentada das plantas secas vai ficando cada vez mais “branca”, como já observavam os indígenas centenas de anos atrás.
Há áreas preservadas de Caatinga que parecem verdadeiras florestas fantasmas, onde as plantas aparentam se decompor de pé, teimando em não tombar na terra esturricada.
Segundo alguns órgãos públicos e universidades que fazem o monitoramento da crise hídrica, o Nordeste vem passando pela maior seca dos últimos 100 anos. De acordo com dados da Secretaria de Estado do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos (Semarh) disponibilizados no Monitor de Secas, aproximadamente 62% do estado de Alagoas encontra-se em nível de seca excepcional, compreendendo 52 municípios do Sertão, Agreste, Sertão do São Francisco e Zona da Mata.
Por outro lado, a quantidade de chuvas abaixo da média nos últimos anos não vem mudando apenas a aparência do bioma, mas também tem expulsado alguns de seus “inquilinos” mais antigos e sensíveis: as abelhas, em algumas propriedades de agricultores familiares, estão promovendo um verdadeiro “êxodo”.
Elas abandonam as colmeias e, com isso, a renda do agricultor, que já estava desnutrida devido a perdas em outras atividades no campo, fica também sem o doce do mel.
Mapa da Semarh mostra municípios em situação de "seca excepcional" (à esquerda) e outros em situação de "seca extrema" (Foto: Arquivo/Semarh) |
Mais de 50 enxames abandonam agricultor de Água Branca
Devido à escassez de chuvas nos últimos 5 anos, os agricultores familiares acumulam prejuízos em todas as atividades: produção de leite, criação de gado, ovelhas, aves, plantação de feijão, milho, palma, capim e, também, na produção de mel. Um dos mais prejudicados devido à migração das abelhas foi Ronaldo Gonçalves, do município de Água Branca, no Sertão de Alagoas.
Segundo ele, nesse período, cerca de 50 enxames já deixaram as colmeias de sua propriedade. A principal razão apontada pelo agricultor foi a seca. “No começo da seca, a minha produção de mel, que era de 2 mil a 3 mil quilos por ano, caiu pra 200 a 300 quilos. Agora voltou pra 800 a 900 quilos”, lembrou Ronaldo Gonçalves.
Isso porque, segundo ele, algumas colmeias foram instaladas próximo a uma área de preservação ambiental delimitada pelo Instituto do Meio Ambiente (IMA). “Mesmo assim, ano passado ainda perdi dois enxames”, lembrou Ronaldo, que é apicultor há 15 anos e agora trabalha com cerca de 40 colmeias.
Além de apontar a seca como a principal causa para a fuga das abelhas, o agricultor acredita que, se tivesse tido assistência técnica continuada, as perdas teriam sido menores. “A gente participa dos cursos de apicultura, mas acompanhamento de técnicos aqui a gente não tem, não. Tem muitas coisas pequenas da apicultura que a gente não sabe”, frisou.
Além de apicultor, ele é meliponicultor, ou seja, possui abelhas sem ferrão, que são nativas do Brasil, mais raras, cujo mel é mais procurado e tem valor comercial mais alto. “Tem gente que diz que as abelhas estão desaparecendo, principalmente com essa seca. Mas a apicultura é minha paixão, é uma higiene mental trabalhar com abelhas”, ressaltou, com entusiasmo, Ronaldo Gonçalves.
Abelhas buscam água em reservas no meio da Caatinga; sem isso, elas migram para outros locais (Foto: Diego Barros) |
Com estiagem, produtor fica sem previsão para colheita de mel
Nos últimos meses, 13 enxames abandonaram as colmeias da propriedade do agricultor Noé Paulino Gomes e do filho dele, Fagner Gomes, no Sítio Lages, zona rural de Piranhas. Eles atribuem o “êxodo” das abelhas ao agravamento da seca.
Sem chuvas, as plantas típicas da Caatinga que servem de alimento para as abelhas – onde elas retiram o néctar – não promovem a chamada “florada”. Outro agravante é a falta de água, apesar de que, na propriedade deles, existe uma barragem que ainda preserva o líquido.
Segundo Fagner Gomes, na propriedade ficaram 21 enxames. A perda, portanto, foi acima de 35%. “A seca tá castigando demais”, ressaltou. A espécie de abelha que ele e o pai mantêm no Sítio Lages para produção de mel e complementação da renda é conhecida como “italiana” ou “europeia”, que não é nativa do Brasil, como o nome diz, mas que já vive aqui há muito tempo. Agora, os insetos migraram para áreas mais propícias com o objetivo de preservar a espécie.
Por outro lado, de acordo com Fagner Gomes, a última colheita de mel realizada na propriedade ocorreu em agosto de 2016. A próxima não tem previsão. “Vai depender da chuva e da florada da vegetação”, acrescentou.
Quando as chuvas eram bem distribuídas ao longo do ano, segundo Fagner, era possível fazer até quatro colheitas de mel. Parte da produção é entregue à Cooperativa dos Produtores de Mel, Insumos e Demais Produtos da Agricultura Familiar (Coopeapis), que mantém uma casa do mel no povoado Piau, a poucos quilômetros do Sítio Lages. Lá, o mel é processado e embalado para distribuição, inclusive para a merenda das escolas.
Produção de cooperativa cai de 30 para 4 toneladas de mel por ano
De acordo com o apicultor Dyego Correia, que é presidente da Coopeapis, nos últimos anos, a produção de mel da cooperativa caiu de 30 para 4 toneladas por ano. Ele também atribui a diminuição da produção à falta de chuvas, que causou a migração dos enxames.
“Sem chuvas, não teve florada, e com isso as abelhas foram embora. Todos os produtores vinculados à cooperativa tiveram perdas de enxames”, ressaltou Dyego, informando que fazem parte da Coopeapis 81 produtores de Piranhas, Olho D’água do Casado, São José da Tapera, Senador Rui Palmeira, Carneiros, Ouro Branco, Pariconha, Delmiro Gouveia e Pão de Açúcar.
“Com essa falta de mel, não temos nem como assumir grandes contratos, porque estamos sem produção. Essa seca dos últimos anos, além da perda de abelhas, diminuiu o ânimo dos agricultores para a atividade”, apontou o presidente da entidade, que já está em busca de parcerias com o Sebrae/AL e a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB/AL) para transferência de tecnologia.
Ele acredita que, com assistência e treinamento dos produtores, é possível, até o início de 2018, recuperar os enxames e retomar a produção de mel. “Mas vai depender também das chuvas e da florada da vegetação da Caatinga. Acho que no geral os produtores perderam 80% dos enxames”, destacou.
Cooperativa Coopeapis produzia sachês com mel que eram enviados para a merenda de escolas em municípios do Sertão (Foto: Diego Barros) |
Quando retomar as condições de produção, o mel voltará a ser levado para a Casa do Mel, equipamento que a Coopeapis mantém no distrito do Piau, em Piranhas, onde o produto é processado e embalado. De lá, ele já segue para os compradores, inclusive para as prefeituras da região, que no passado já incluíram o mel na merenda escolar.
Segundo dados do Arranjo Produtivo Local (APL) Apicultura no Sertão, além da Coopeapis, o semiárido conta com outras duas cooperativas, 12 associações e uma organização, que reúnem ao todo 526 produtores de mel. Todos eles, de alguma forma, foram afetados pela escassez hídrica dos últimos 5 anos.
Especialista destaca falta de chuvas e manejo inadequado para migração de abelhas
Segundo o engenheiro agrônomo Pedro Acioli de Souza, que é consultor nas áreas de apicultura, meliponicultura e meio ambiente, até 20% de perda de enxames, em qualquer época, pode ser considerado algo normal, pois faz parte da migração natural das abelhas. Acima disso, ressalta o especialista, houve algum erro de manejo, ou seja, do trato com esses insetos. Ele não desconsidera, porém, a influência da falta de chuvas.
“Os enxames abandonam as colmeias quando não há alimento, água ou as condições climáticas estão muito severas. Já na época das chuvas, em maio, junho e julho, as abelhas se reproduzem, é a ‘enxameação’, para preservar a espécie”, esclareceu.
“As abelhas são migratórias. Sem as condições adequadas, elas vão embora. Nós temos que aprender a conviver com a seca, que é recorrente, é um fato natural. Nós não temos sabido conviver com ela. As abelhas conseguem, elas possuem suas estratégias”, emendou o especialista.
Na opinião dele, o desconhecimento dos apicultores e meliponicultores – que produzem mel a partir das abelhas sem ferrão, típicas do Brasil – em relação ao manejo tem a ver com a falta de um serviço público de assistência técnica e extensão rural permanente no campo.
“A apicultura e a meliponicultura em Alagoas precisam de um programa de atividades continuadas, que dessa forma vai produzir riquezas para a agricultura familiar, fixando o homem na terra, mantendo o bioma, o meio ambiente de forma geral muito melhor do que outras atividades que o degradam. E a apicultura e meliponicultura podem gerar uma riqueza inestimável para a balança comercial do estado”, definiu Pedro Acioli.
“O Ceará e o Piauí são os maiores produtores de mel do Nordeste, mas ao mesmo tempo são os dois estados mais secos. Os produtores de lá sabem manejar as abelhas no bioma do semiárido”, enfatizou o especialista.
Para os agricultores familiares que produzem mel no Sertão de Alagoas, ele deixa a seguinte orientação, que deve ser seguida principalmente em tempos de escassez hídrica: implantar o apiário onde tenha uma abundante flora; ter água próximo; os enxames devem ficar em local sombreado para as abelhas terem um conforto térmico.
Mesmo com impacto ambiental da seca, agricultor consegue manter enxames
Na contramão de outros apicultores e meliponicultores do Sertão alagoano, que acumulam perdas devido ao impacto ambiental causado pela seca, João Gomes de Sá conseguiu manter os enxames que já possuía na propriedade, na zona rural de Água Branca.
Ele é produtor de mel das abelhas sem ferrão. Entre seus enxames, destacam-se as espécies uruçu, papa-terra, plebeia, cupira, grude e tubiba. Uma das estratégias usadas por ele para evitar o êxodo das abelhas foi fornecer a elas uma espécie de “ração” que, de certo modo, supre a carência da falta da florada da vegetação da Caatinga.
O alimento foi desenvolvido a partir da consultoria do engenheiro agrônomo Pedro Acioli, que é especialista no tema. Para produzi-lo, são usados açúcar, gelatina, pólen e mel de apis (abelhas com ferrão).
Ao invés de explorar o mel dessas espécies, o objetivo de João Gomes é multiplicar os enxames. Ele aproveita uma tendência natural das abelhas, que é a divisão do grupo quando o enxame fica com muitos indivíduos, e oferece uma nova colmeia. Assim, ao mesmo tempo em que obtém renda com a comercialização desses novos enxames, ele ajuda a preservar as espécies de abelhas sem ferrão, muitas delas ameaçadas de extinção.
Especialista orienta que colmeias devem ficar em local protegido do sol para evitar que abelhas vão embora (Foto: Diego Barros) |
Conservação de apenas 20% da Caatinga prejudica abelhas
Devido a medidas do passado e a outras do presente, que continuam sendo praticadas por milhares de proprietários rurais no Brasil, o desmatamento da Caatinga chega a 46% da área do bioma, segundo dados do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Ela ocupa uma área de cerca de 844.453 quilômetros quadrados, o equivalente a 11% do território nacional.
O órgão aponta que o desmatamento, nos dias atuais, se deve ao consumo de lenha nativa, explorada de forma ilegal e insustentável, para fins domésticos e indústrias, ao sobrepastoreio e à conversão para pastagens e agricultura.
Em Alagoas, a situação é ainda pior. De acordo com dados da Secretaria de Estado do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos (Semarh), a cobertura vegetal remanescente para a Caatinga é em torno de 20%. Isso significa que os outros 80% foram derrubados para dar lugar a cidades, pastagens ou criação de gado.
Além da seca, que é algo cíclico e natural, e do manejo dos produtores realizado às vezes de forma inadequada pela falta de conhecimento, a degradação da Caatinga também compromete o desenvolvimento da apicultura e da meliponicultura, interferindo de forma negativa na migração das abelhas, como tem ocorrido nos últimos 5 anos no Sertão de Alagoas.
Por outro lado, devido a fenômenos naturais e a ações humanas ao longo das décadas, 46 municípios alagoanos correm o risco de desertificação. Outros 19 municípios também estão propensos ao mesmo fenômeno e, somados, eles equivalem a 62% dos municípios do estado.
Os dados são da Semarh que, em conjunto com o Instituto do Meio Ambiente (IMA), desenvolve algumas ações para tentar preservar o bioma Caatinga, reduzir as causas da desertificação, que têm no homem seu principal agente, e, ao mesmo tempo, educar, fiscalizar e punir quem infringe a lei e comete crimes ambientais.
Apesar da degradação de cerca de 80% de sua cobertura original, a Caatinga alagoana possui algumas áreas de preservação. Uma delas chama-se Monumento Natural do Rio São Francisco, que inclui áreas dos municípios de Delmiro Gouveia, Olho D’água do Casado e Piranhas.
Existe também a Reserva da Vida Silvestre Morro do Craunã, em Água Branca, o que contribui para a produção de abelhas pelos agricultores locais.
Num guia da editora Fundação Brasil Cidadão, disponibilizado pelo portal na internet do Ministério do Meio Ambiente (MMA), os autores informam quais são as árvores da Caatinga mais visitadas pelas abelhas e que podem, portanto, facilitar a produção de mel. Entre elas, estão: jurema, craibeira, aroeira, cajueiro, umbuzeiro, carnaubeira, pau-d’arco-roxo, pacoté, pau-branco, imburana, catingueira, angico, sabiá, espinheiro e juazeiro.
Mesmo degradada e com algumas áreas em processo de desertificação, a Caatinga abriga, segundo o Ministério, 178 espécies de mamíferos, 591 de aves, 177 de répteis, 79 espécies de anfíbios, 241 de peixes e 221 de abelhas, entre elas as que possuem ferrão e as que não o possuem, como a uruçu, cujo mel é tão valorizado.
Para os agricultores familiares, a preservação do bioma, assim como a regularidade das chuvas, é fundamental para que as abelhas permaneçam no semiárido e, como enalteceu o artista Alceu Valença na música “Morena Tropicana”, o “doce mel, mel de uruçu” continue gerando renda e sabor para os sertanejos.
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