A tradição e a história construídas nos 95 anos da Mangueira, alcançados este ano, não afastam a verde e rosa do frescor das novidades. Pelo contrário. A agremiação nonagenária ganha grande projeção e se consolida como marca regional e internacional. Há uma semana, sua bateria encerrou o desfile da grife Chloé, em Paris, e foi notícia na imprensa mundial, sobretudo, em sites do Reino Unido e da França.
Antes, a escola de samba inaugurou, em agosto, uma exposição no Centro de Referência do Artesanato Brasileiro (CRAB), na Praça Tiradentes, no Centro do Rio. No início do ano, abriu um bar temático na Barra, na Zona Oeste, e uma loja no shopping Nova América, em Del Castilho, na Zona Norte. E, em setembro, foi a vez de a quadra ganhar nova identidade visual e de sua bateria iniciar shows num clube em Copacabana; tudo sob a batuta de Guanayra Firmino, primeira mulher eleita para a presidência (triênio 2022-2025).
— Sou aberta às novas ideias — banca ela, aos 58 anos.
Guanayra é a continuação de uma família com genealogia no samba. Seus pais são a baluarte e presidente da Velha Guarda da Mangueira Emergenilda Dias Moreira, a Dona Gilda, e Roberto Firmino, presidente de 1992 a 1995. A líder descende, ainda, de Tia Fé (Benedita de Oliveira), famosa benzedeira que criou, em 1910, o Rancho “Pérolas do Egito”, e que era avó do seu tio, Seu Sinhozinho (Darque Dias Moreira), que foi presidente da agremiação de 1974 a 1976.
Carreira múltipla
O trabalho de liderança com afinco é motivado por sua identificação com o carnaval coletivo e pelas vivências pessoais. Enfermeira aposentada pelo Ministério da Saúde, ela nasceu no Buraco Quente, região popular do morro, foi vice-presidente da escola em gestões anteriores e a responsável por criar, em 1992, a Ala da Comunidade. Além da profissão na área de saúde, a função que ocupa no candomblé, a de ekedi (braço direito do pai ou da mãe de santo), mostra a que veio: cuidar e acolher.
— Trabalhei muito anos na enfermagem, principalmente ajudando as pessoas da região. De vez em quando, subia para verificar a pressão ou o curativo de alguém. Ainda hoje, entre os chegados, tem gente que me pede para dar injeção — diz a carioca, que também tem no currículo cursos de gestão pública.
Posicionamento firme
A família mangueirense e afrocentrada demarca uma origem em que a presidente se inspira para jogar luz na história da formação do Brasil. Seus sambas preferidos são “Mangueira: 100 anos de liberdade ou ilusão”, de 1988, e “As Áfricas que a Bahia canta”, deste ano, o primeiro em que colocou seu carnaval na rua. Nas redes sociais, a autodefinição no perfil como “mulher preta, mãe, avó, candomblecista, ekedi e presidenta” indica seu posicionamento.
— A Mangueira é uma escola do povo, extremamente política, mas da política social e cultural. É daquelas que não precisa colocar nomes (ela se refere a não determinar inclinações à direita ou à esquerda). O samba deste ano trazia uma referência a nossos ancestrais. Minha tataravó, Tia Fé, era filha de pessoas escravizadas. Esse enredo representava muita gente do morro. E quando dizemos que a escravidão não acabou, estamos falando das condições em que o negro vive no país: geralmente, é quem ocupa os piores postos de trabalho, tem fome — frisa.
A trajetória desde a adolescência engajada faz Guanayra falar com segurança sobre identidade e representatividade. Foi eleitora de Brizola, “na mente e na ideologia”, como ela própria diz, ajudava na Associação de Moradores da Mangueira desde os 14 anos e foi vice-diretora daquele coletivo antes dos 18. Ela enfatiza, no entanto, que quer dissociar inclinações políticas de escolhas da escola. Não é seu intuito, por exemplo, levar à Sapucaí desfiles panfletários. O samba para 2024, escolhido na madrugada de hoje para o enredo “A negra voz do amanhã”, homenageia a cantora Alcione. É uma maneira de tratar de arte e cultura:
— Quando mais nova, via a necessidade de ir buscar coisas para a comunidade. A gente tinha os mais velhos nos ajudando, íamos a gabinetes, buscávamos água, cimento. Uma vez, fomos sete pessoas num fusquinha, com tia Zica (mulher do grande compositor Cartola )dentro do carro. Vejo necessidade de ir atrás do que for possível, e por que não para as escolas de samba? Quando pudemos nos posicionar pelo carnaval, não deixamos de fazer. Ele não estava sendo prestigiado como deveria por governos anteriores (municipal e federal). Mas essa é a Guanayra, não é a presidente. Então, acho que a política agora “está indo”, e samba direcionado a isso não pretendo fazer — diz.
Olho na modernização
A abertura do bar na agitada Avenida Olegário Maciel, na Barra, é fruto de uma parceria com empresários. E a loja no Shopping Nova América, em breve, deve fazer a renda da escola aumentar.
— Um comércio no shopping exige um investimento maior. Hoje em dia, ele já se pagou. Agora, vamos esperar lucros. A marca vende durante o ano, mas a procura sobe bastante após a escolha dos ambas — explica.
Recentemente, outra novidade, quanto à identidade visual da Mangueira, passou a estampar a quadra reaberta. Está mais forte a presença das cores verde e rosa e a logo surgiu mais clean.
— Também vieram as melhorias na estrutura da quadra. Mudanças na bandeira é que não são para tão cedo — garante Guanayra.
Museu a céu aberto
Em breve, em data ainda a ser marcada, haverá a inauguração, na Mangueira, do MuCéu, o Museu a Céu Aberto do Samba. No projeto, 20 locais históricos — entre eles as casas onde moraram compositores da escola — passaram por georreferenciamento e receberam placas para acesso virtual e presencial. Também será feita uma capacitação de pessoas de 14 a 18 anos, moradoras da comunidade, para que elas possam guiar visitantes.
— Poder contribuir para a valorização desse legado é uma alegria. Além de patrocinar o museu, também estamos realizando a reforma da biblioteca da Mangueira. Vamos entregá-la com novo acervo e instalações mais modernas — informa Danielle Barros, secretária estadual de Cultura e Economia Criativa, que apoia a iniciativa.
Utilize o formulário abaixo para comentar.