Três dias após decisão judicial obrigar o governo de São Paulo a devolver aos alunos da rede estadual apostilas confiscadas na semana passada, o governador João Doria (PSDB) afirmou que não irá recorrer e que restituirá o material com um encarte explicativo.
As apostilas, destinadas a estudantes do oitavo ano do ensino fundamental, foram recolhidas às pressas sob a justificativa de que faziam "apologia à ideologia de gênero", conforme o tucano publicou em rede social. O termo, não reconhecido no meio acadêmico, é usado por alas conservadoras contrárias a discussões sobre diversidade sexual.
Segundo Doria, a decisão de entregar as apostilas no início da semana que vem com um encarte para explicar aos alunos e professores como elas devem ser usadas foi tomada após entendimentos com o Ministério Público e a Defensoria Pública.
O pedido judicial acolhido na terça-feira, no entanto, não foi formulado por esses órgãos, mas sim por um grupo de oito professores, com o apoio do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu). A decisão deu 48 horas para o governo devolver a apostila, o que até a tarde desta sexta-feira (13) não ocorreu. A publicação contém conteúdo de oito disciplinas: arte, ciências naturais, educação física, geografia, história, inglês, matemática e português.
Professores que moveram a ação devem enviar em instantes uma comunicação à juíza autora da decisão para informar o que entendem como descumprimento de prazo. Eles pedem a aplicação de multa de R$ 330 mil diários a serem pagos pelo patrimônio pessoal do governador.
A Procuradoria Geral do Estado, por sua vez, diz entender que o prazo não foi descumprido, uma vez que ainda não foi notificada formalmente da decisão. Segundo o órgão, o extrato de tramitação eletrônica do processo mostra que o mandado de citação está desde quinta-feira em posse do oficial de justiça. O prazo só começaria a contar depois que ele entregar a citação e oficializar o procedimento no processo."Há rito que precisa ser cumprido", diz a procuradora-geral Lia Porto Corona.
A advogada do CADHu Eloisa Machado de Almeida, professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), contesta a argumentação e diz que o prazo já conta a partir do momento em que a intimação aparece no sistema de processo eletrônico, ou seja, na quarta-feira.
Ela lembra ainda que a decisão já foi divulgada pela imprensa e pelo Diário Oficial. "O recolhimento da apostila foi feito de forma ilegal por uma publicação em rede social do governador. É motivo de perplexidade que a ilegalidade seja cometida por um tuíte e que uma decisão judicial amplamente divulgada encontre tanta resistência", afirma.
Assinam a ação judicial os professores Fernando Cássio e Salomão Ximenes, da UFABC (Universidade Federal do ABC); Ana Paula de Oliveira Corti e Leonardo Crochik, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP); Carmen Sylvia Vidigal Moraes e Romualdo Portela, da Faculdade de Educação da USP; Débora Cristina Goulart, da Unifesp (federal de São Paulo); e Maria Carla Corrochano, da Ufscar (Universidade Federal de São Carlos).
CONTEÚDO DA APOSTILA
O "erro inaceitável" que o governador disse ter visto na apostila para o 8º ano do ensino fundamental estava na parte de ciências, em texto sobre orientação sexual e identidade de gênero.
A apostila reproduz conteúdo produzido pelo Ministério da Saúde, que diz: "A identidade de gênero refere-se a algo que não é dado e, sim, construído por cada indivíduo a partir dos elementos fornecidos por sua cultura: o fato de alguém se sentir masculino e/ou feminino. Isso quer dizer que não há um elo imediato e inescapável entre os cromossomos, o órgão genital, o aparelho reprodutor, os hormônios, enfim o corpo biológico em sua totalidade, e o sentimento que a pessoa possui de ser homem ou mulher".
Outro trecho afirma: "Nesse sentido, podemos dizer que ninguém 'nasce homem ou mulher', mas quenos tornamos o que somos ao longo da vida, em razão da constante interação com o meio social."
Em nota na terça-feira passada (3), a Secretaria da Educação afirmou que o material tinha "conteúdo impróprio para a respectiva idade e série e em desarranjo com as diretrizes desta gestão". Isso porque, segundo a pasta, o tema "identidade de gênero" estaria em desacordo com a Base Nacional Comum Curricular.
A base, porém, prevê que, no 8º ano, o aluno consiga "selecionar argumentos que evidenciem as múltiplas dimensões da sexualidade humana (biológica, sociocultural, afetiva e ética)".
Na terça-feira, a Secretaria da Educação negou ter ocorrido censura e afirmou que o governo recolheu o material "por entender que a abordagem 'ninguém nasce homem nem mulher' expressa na apostila é equivocada por não apresentar fundamentação cientifica".
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