O próximo semestre legislativo, que começa oficialmente em 1º de agosto, deverá trazer a bordo mais uma investida contra os direitos dos trabalhadores. Na pauta de votações no plenário da Câmara, está uma medida provisória (MP) que altera 36 artigos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Editada pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) no final de abril, a MP 881 dificulta, por exemplo, o acesso da Justiça aos bens de empregadores com dívidas trabalhistas. Atualmente, essa possibilidade é prevista como meio para viabilizar eventuais indenizações.
A proposta também acaba com o e-Social, sistema que centraliza o envio de dados trabalhistas pelas empresas, como contribuições previdenciárias, folhas de pagamento, notificação de acidentes de trabalho e aviso prévio, entre outras.
Além disso, a MP libera o trabalho aos domingos e feriados, isentando as empresas de pagarem remuneração extra por isso – regra que hoje vale para categorias com expediente nesses dias. O governo tem difundido a tese de que esse tipo de iniciativa ajudaria a gerar mais empregos e alavancar a economia.
“Nós discordamos dessa análise porque, inclusive, eles fizeram a defesa muito fortemente de que a reforma trabalhista também iria gerar empregos e não gerou. Gerou precarização, a situação está bem pior, e o desemprego até cresceu no período. Eles vão é superexplorar os trabalhadores e as trabalhadoras que já estão no sistema”, critica a secretária de Relações de Trabalho da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Graça Costa.
Ao ser apresentada, a MP 881 trazia especificamente itens voltados para a redução da participação do Estado na economia através da flexibilização de normas aplicadas ao ramo empresarial, como imunidade burocrática para startups (empresas recém-criadas e que, geralmente, atuam no ramo de tecnologia), permissão para entrada de pequenos e médios empreendimentos no mercado de capitais, entre outros. Por esse motivo, foi apelidada pelo governo de “MP da Liberdade Econômica”.
Em meio ao universo de pautas complexas que hoje sacodem o Congresso Nacional, a proposta tramitou sem alarde e foi aprovada numa comissão mista – colegiado composto por deputados e senadores – no último dia 11. Como se deu em meio ao calor dos debates sobre a reforma da Previdência, que tem centralizado as discussões e o jogo de forças no Legislativo, a votação passou quase despercebia mesmo para quem acompanha o mundo político.
“O palco estava, no seu primeiro plano, ocupado pela PEC 6 [reforma previdenciária]. No dia em que tivemos uma conversa final com o relator pra tentar negociar alterações na MP, por exemplo, a reforma começou a ser votada, aí as alterações prosperaram nas sombras”, disse ao Brasil de Fato a deputada Margarida Salomão (PT-MG), integrante da comissão mista que avaliou a MP.
A medida precisa passar pelos plenários da Câmara e do Senado e tem como prazo final o dia 10 de setembro. Caso não seja votada e aprovada até lá, perde a validade.
Remendos
Ao todo, haviam sido apresentadas, por deputados e senadores de diferentes espectros políticos, 301 emendas (sugestões de alteração) ao texto editado por Bolsonaro. O relator, deputado Jerônimo Goergen (PP-RS), acatou 126, sendo algumas delas de forma integral e outras parcialmente.
Por pouco, o colegiado não aprovou, por exemplo, uma emenda que liberava a venda de medicamentos em supermercados – o que só não ocorreu por conta de forte pressão exercida por entidades da área da saúde.
Em meio à penumbra midiática sobre a tramitação da medida, o texto ganhou os enxertos que alteram normas trabalhistas e chegou à versão atual, que traz um total de 50 artigos – inicialmente, eram 19. Diante das mudanças, passou a ser chamada por opositores de “nova reforma trabalhista”.
A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) argumenta que as modificações são substanciais e que, por isso, ferem o entendimento consolidado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema.
Em 2015, no julgamento de uma ação direta de inconstitucionalidade, a Corte fixou que emendas parlamentares não podem desfigurar o conteúdo central de uma MP, devendo se limitar a restrições, adequações ou adaptações de pontos trazidos pelo dispositivo presidencial. Esse tipo de mudança é conhecido, no parlamento, como “contrabando legislativo”.
A presidenta da Anamatra, Noemia Porto, aponta que a prática traz insegurança jurídica ao país. Ela acrescenta que, do ponto de vista do mérito, a MP também coloca o Brasil nessa situação porque a medida fere diferentes tratados internacionais dos quais o Estado brasileiro é signatário.
“Se o Parlamento está disposto a aprovar textos contra a Constituição e contra convenções que o Brasil já ratificou, o que isso significa? Que vai potencializar a discussão judicial. Você vai aumentar o número de casos judiciários em que se pretende discutir um texto infraconstitucional que é aprovado violando a Constituição e normas internacionais”, complementa.
Fiscalização
Outro aspecto da MP diz respeito à fiscalização na área do trabalho. Pela proposta, o agente do Estado não poderá, por exemplo, interditar de imediato um estabelecimento que ofereça risco aos trabalhadores. A medida somente poderá ser efetivada com autorização superior.
A Anamatra aponta que a nova norma infringe, por exemplo, a Convenção 81 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê proteções para a auditoria fiscal na área.
“O relatório aprovado pela comissão coloca travas que inibem uma ampla fiscalização, sem dúvida. É mais risco para o trabalhador”, destaca a presidenta.
Ela chama atenção ainda para outro ponto: a Convenção 155 da OIT, que trata de normas de medicina e segurança do trabalho, também é atropelada pelo relatório, que, em um de seus trechos, torna facultativa a criação da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (Cipa) nas empresas.
A presidenta sublinha que a proposta preocupa porque o Brasil ainda registra estatísticas alarmantes na área, tendo contabilizado 17.683 acidentes fatais entre 2012 e 2018. O levantamento é do Observatório Digital do MPT/OIT e resulta de números oficiais da Previdência Social.
Ainda segundo os dados, houve 378.060.049 dias de trabalho perdidos por afastamento no mesmo intervalo de tempo, o que trouxe um gasto de mais de R$ 84 bilhões. Mas a Anamatra ressalta que o problema está longe de se resumir a uma questão econômica.
“O Brasil permanece como o 4º país do mundo no número de acidentes e de doentes [por causa do trabalho]. A tragédia de Brumadinho não nos deixa mentir. Nós mal conseguimos ainda investigar por completo a tragédia, compreender como aconteceu pra aprender com ela e já temos uma legislação infraconstitucional que visa afrouxar ainda mais a fiscalização, o que demonstra que teremos ambientes de trabalho extremamente vulneráveis”, projeta, ressaltando a importância de observar a preservação da saúde dos trabalhadores.
Debate
A Anamatra também critica a falta de debate sobre o conteúdo da MP.
“Nós havíamos, inclusive, pedido mais prazo [à comissão], para que segmentos plurais da sociedade civil pudessem contribuir com a discussão trazendo dados estatísticos, apontando problemas nas ações judiciais e mostrando o quadro real do universo do trabalho hoje no Brasil. Infelizmente, não foi dada essa oportunidade”, queixa-se Noemia.
A deputada Margarida Salomão acredita que, caso haja uma articulação mais forte, a oposição pode obter alterações no texto da proposta durante a tramitação no plenário.
“Acho que agora há espaço pra gente levar mais luz pra essa votação e, naturalmente, tentar inibir danos piores. É o que eu espero”, finaliza.
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