As repetidas críticas de autoridades brasileiras à China por conta da pandemia do novo coronavírus podem fazer com que o país asiático restrinja o envio ao Brasil de produtos chineses usados no combate à covid-19, segundo analistas entrevistados pela BBC News Brasil.
Uma eventual retaliação dos chineses nesse campo, segundo os analistas, limitaria a oferta no Brasil de itens já escassos para o enfrentamento da pandemia, como máscaras cirúrgicas, respiradores hospitalares e kits de teste rápido.
A China é a maior fabricantes global desses produtos e tem doado ou exportado os materiais para vários países.
Diante das recentes rusgas com autoridades brasileiras, porém, Pequim poderia deixar o Brasil em segundo plano ao decidir sobre futuras remessas, segundo os observadores.
As tensões entre autoridades brasileiras e chinesas se agravaram no domingo (05/04), quando o ministro da Educação, Abraham Weintraub, publicou no Twitter uma mensagem insinuando que a pandemia servia aos desejos da China de "dominar o mundo".
Na mensagem, posteriormente apagada, Weintraub imitou a fala do personagem Cebolinha, da Turma da Mônica, ridicularizando um estereótipo sobre o sotaque de chineses quando falam português.
Em resposta, o embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, afirmou que a fala do ministro era "racista" e disse aguardar "uma declaração oficial do lado brasileiro sobre as palavras feitas pelo ministro da Educação".
O embate ocorre duas semanas após a embaixada chinesa reagir incisivamente a críticas que o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) fez à postura de Pequim no início da pandemia, levando membros do governo e do Congresso a tentar por panos quentes.
Vitrine natural para ajuda chinesa
Para Stephan Mothe, analista de mercado da consultoria Euromonitor com mestrado em Desenvolvimento Internacional pela Universidade Tsinghua, na China, "a dimensão e importância do Brasil o tornariam uma vitrine natural para a ajuda internacional chinesa" contra a covid-19.
Mas Mothe afirma que os embates recentes farão com que o Brasil seja preterido por autoridades chinesas. "Como os chineses não têm produtos para enviar para todo mundo, obviamente escolherão parceiros prioritários, com quem não tenham desavenças."
Na semana passada, o ministro da Saúde, Henrique Mandetta, disse que negociava com a China formas de trazer ao Brasil equipamentos de proteção individual (EPI) e ventiladores doados pelo país asiático.
Se a missão prosperar, o Brasil será um dos vários países a receber itens médicos chineses contra a covid-19.
À Itália, país europeu mais afetado pela pandemia, os chineses mandaram mil ventiladores, dois milhões de máscaras, 100 mil respiradores, 20 mil aventais de proteção e 50 mil kits de exame.
A China também enviou ou se comprometeu a enviar itens médicos para o Irã, a Sérvia, os EUA e todos os países africanos, entre várias outras nações.
A estratégia chinesa vem sendo chamada de "diplomacia das máscaras" e é atribuída a uma tentativa de Pequim de mudar a narrativa acerca do novo coronavírus. Sendo os primeiros a sofrer com a doença - e acusados por certos setores de serem responsáveis pelo problema -, os chineses agora tentam se apresentar como uma fonte de soluções para a pandemia.
Sinofobia e risco aos negócios
Segundo Mothe, Pequim teme que declarações como as de Weintraub e Eduardo Bolsonaro ampliem a sinofobia (preconceito contra chineses) e dificultem a operação de empresas chinesas no Brasil.
As declarações de ambos insuflaram redes bolsonaristas, que passaram a pedir um boicote a produtos chineses no Brasil. Muitos também começaram a se referir ao novo coronavírus como "vírus chinês" - mesma expressão usada pelo presidente americano, Donald Trump, que vê Pequim como um adversário.
Mothe lembra ocasiões em que a China retaliou outras nações por ter seus interesses feridos. Um dos últimos episódios ocorreu em 2014, quando autoridades japonesas reivindicaram soberania sobre as ilhas Senkaku, que os chineses chamam de Diaoyu e consideram parte de seu território.
Em resposta, a China suspendeu suas vendas para o Japão de terras raras, componentes essenciais para a indústria eletrônica. "Com um único gesto, os chineses puseram um setor crucial da economia japonesa em xeque", diz Mothe.
'Perderam a paciência'
Um experiente diplomata brasileiro, que pediu para não ser identificado por temer represálias, disse à BBC News Brasil que as declarações anti-China por parte de autoridades nacionais fizeram com que Pequim "perdesse a paciência".
O diplomata afirma que a China é extremamente sensível ao debate em torno de sua postura perante a pandemia - e que discursos e teorias conspiratórias que atribuem aos chineses responsabilidade pela disseminação da doença são tratados por Pequim como "ofensas ao orgulho nacional".
Segundo ele, as rusgas ocorrem após a China fazer um "esforço enorme para seduzir o governo Bolsonaro", o que incluiu a participação de uma estatal chinesa no último leilão do pré-sal, rejeitado por grandes petrolíferas mundiais.
Vendas de soja seguem fortes
Se há temores quanto a possíveis retaliações ao Brasil no campo da "diplomacia das máscaras", os efeitos dos embates recentes para as trocas comerciais mais relevantes entre Brasil e China parecem mais incertos.
Analista de mercados da Ag Rural, consultoria especializada em grãos, Daniele Siqueira diz à BBC News Brasil que as trocas de farpas entre membros dos dois governos tiveram "impacto zero" até agora nas vendas da soja brasileira para a China.
A soja é o principal produto exportado pelo Brasil à China, o maior parceiro comercial do país. Em 2019, as vendas da oleaginosa à nação asiática renderam ao Brasil cerca de US$ 20,5 bilhões (R$ 108,4 bilhões, no câmbio atual).
Naquele ano, segundo a alfândega chinesa, o Brasil foi responsável por 57,7% de toda a soja importada pela China.
A soja brasileira é usada principalmente na alimentação de porcos, que são a principal fonte de proteína dos chineses. Segundo Siqueira, "a soja brasileira é absolutamente indispensável para a segurança alimentar da China".
Ela diz que, por mais que quisessem, os chineses não conseguiriam no curto e médio prazo substituir a soja brasileira pela que é cultivada pelos EUA e a Argentina, os outros dois grandes exportadores globais.
E a demanda chinesa pela oleaginosa brasileira se mantém forte mesmo durante a pandemia, diz ela.
Em março, as exportações brasileiras do item foram 40% maiores que as do mesmo mês do ano passado. "Não vejo nenhum perigo de vendermos menos soja. Se houver maior desavença, acredito que eles (chineses) devem resolver em outras esferas", afirma.
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