As declarações do ministro da Justiça, Sergio Moro, sobre as investigações que apuram ataques hackers a autoridades são "impróprias" e geram "incômodo e estranhamento", disse à BBC News Brasil o presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), Edvandir Felix de Paiva, nesta sexta-feira (26/7).
Nesta semana, após a PF prender quatro suspeitos de terem violado a privacidade de autoridades, entre elas o próprio Moro, o ministro deu diversas declarações indicando que teve acesso à investigação que corre em sigilo na PF.
"Fica muito estranho que um ministro saiba (conteúdo de) uma investigação porque coloca em xeque a autonomia do órgão, a autonomia da investigação, que é algo fundamental", disse Paiva.
O ministro primeiro relacionou em seu Twitter as prisões com as conversas reveladas desde junho pelo site Intercept Brasil, envolvendo Moro e procuradores da Lava Jato, embora a polícia não tenha divulgado provas nesse sentido.
Nesta quinta, Moro contatou outras autoridades, como o presidente Jair Bolsonaro e os presidentes do Senado (Davi Alcolumbre) e Câmara (Rodrigo Maia) para informar que eles também foram alvo de hackers. Disse ainda a outro atingido, o presidente do Superior Tribunal de Justiça, João Otávio de Noronha, que o material com conversas "vai ser descartado para não devassar a intimidade de ninguém".
Felix de Paiva ressalta que a Polícia Federal, embora esteja, do ponto de vista administrativo, subordinada ao Ministério da Justiça, tem autonomia de atuação e não pode comunicar ao ministro informações sigilosas.
"Não há possibilidade de uma ordem hierárquica do ministro da Justiça aos membros da Polícia Federal. (...) Então, quando ocorre esse tipo de manifestação, causa um incômodo, causa um certo estranhamento dos integrantes da Polícia Federal", afirmou. "Foram (declarações) impróprias, foram desnecessárias."
Questionado pela reportagem, Paiva disse não ver necessidade de o ministro se afastar do cargo, justamente porque a função não lhe dá poder de interferir na investigação.
"Ir lá, se imiscuir no meio de uma investigação, não é o papel dele. Não sendo papel dele, não tem por que ele se afastar. O problema nesse ponto é ele se manifestar a respeito de uma investigação que está em andamento e falar de dados que deveriam ser sigilosos", criticou.
Segundo o presidente da ADPF, Bolsonaro e outras autoridades só deveriam ter sido avisadas dos ataques enquanto a investigação ocorre em sigilo se houvesse algum risco iminente e por decisão do juiz da causa, Vallisney de Souza Oliveira, da 10ª Vara Federal do DF.
Confira abaixo a entrevista.
BBC News Brasil – O ministro da Justiça parece ter tido acesso às investigações sobre o hackeamento de autoridades e disse que as conversas capturadas serão destruídas. Ele pode fazer isso?
Edvandir Felix de Paiva – Decidir a destruição, com certeza não. Nem ele nem o próprio delegado que faz a investigação podem destruir nada no inquérito policial. Ele (o delegado) pode, se entender que é necessário, pedir ao juiz da causa e o juiz autorizar. Do meu ponto de vista, nesse momento não haveria por que pedir a destruição de nada, pois a investigação está em andamento.
BBC News Brasil – A Polícia Federal está subordinada ao Ministério da Justiça. Isso autoriza o ministro a ter acesso a informações da investigação?
Paiva – Não deveria ter. Quem deve ter acesso a informações de uma investigação em andamento é apenas o juiz, o procurador, o delegado, um perito que atue no caso e a equipe de policiais que atue no caso. Mesmo assim, há casos de investigação que essas pessoas só sabem da parte que devem saber. O perito só sabe o dado que ele precisa periciar, o agente só sabe da parte que ele tem que fazer levantamento. É o que a gente chama de compartimentação da informação. Só sabe da informação quem precisa saber (para realizar seu trabalho).
A posição do Ministério da Justiça é (ser) a pasta à qual a Polícia Federal está vinculada. Não há possibilidade de uma ordem hierárquica do ministro da Justiça aos membros da Polícia Federal. Ele pode requisitar instalação de inquérito porque a lei permite, mas ele não deve, normalmente, ter acesso a uma investigação que está em andamento. A não ser que haja um motivo para ele saber, uma necessidade, e normalmente não há essa necessidade porque os casos são comandados pelos delegados de polícia e os recursos são liberados pelos superintendentes (da PF), pelos chefes de delegacia, pela diretoria da Polícia Federal. Então, no máximo, um superintendente poderia saber dos detalhes de uma investigação, para liberar recursos, para ajudar a escolher o momento certo de deflagração (de uma operação). É tecnicamente assim.
BBC News Brasil – Por que é importante essa autonomia da Polícia Federal para que as investigações sejam conduzidas sem conhecimento do ministro da Justiça?
Paiva – Justamente para que pessoas de fora não tomem decisões acerca de uma investigação. Nós temos muita confiança no ministro Moro. Ele foi um juiz muito respeitado, hoje é ministro da Justiça, nós temos todo o respeito, como tivemos em relação a outros ministros. Mas não é salutar que terceiros, pessoas que não têm nada a ver com a investigação, tomem ciência delas. Você coloca em risco não somente as informações, pois elas podem vazar e, quanto menos gente souber, mais fácil entender por onde vazou uma investigação. E fica muito estranho que um ministro saiba uma investigação porque coloca em xeque a autonomia do órgão, a autonomia da investigação, que é algo fundamental.
Imagina em determinado momento se nós tivermos uma investigação que o governo da vez não queira aquela investigação, aí você tem um ministro ligado ao governo, que foi nomeado pelo governo, que não faz parte do quadro de servidores da Polícia Federal, decidindo se aquela investigação vai ou não vai para a frente, se vai para esse lado, se vai para outro. Isso é muito perigoso. A Polícia Federal é uma polícia de Estado, não de governo.
BBC News Brasil – Não é uma questão de desconfiança com Sergio Moro, mas uma questão institucional que tem que prevalecer em qualquer governo?
Paiva – Sim. É uma questão de polícia de Estado, de estrutura de trabalho que deve ser permanente. Nos chateia bastante quando um ministro da Justiça diz que deu autonomia à Polícia Federal. A autonomia não tem que depender da vontade de um ministro, nem da vontade do presidente. Ela tem que ser institucional. Não pode um presidente da República dizer que deu autonomia ao Ministério Público. Não, essa autonomia está na Constituição. Eles vão atuar independente do governo da vez.
O que nós fazemos na Polícia Federal é que temos uma cultura institucional muito forte. Então, quando ocorre esse tipo de manifestação do Ministério da Justiça, como está ocorrendo agora, isso causa um incômodo, causa um certo estranhamento dos integrantes da Polícia Federal. E aí a gente sempre se manifesta para que cessem as manifestações (do ministro da Justiça). Não é um caso de estarmos desconfiados do ministro da Justiça, do doutor Moro, não estamos. Nós só achamos que o papel institucional dele não é esse.
BBC News Brasil – As declarações dele nos últimos dias foram impróprias para o cargo de ministro da Justiça?
Paiva – Foram impróprias, foram desnecessárias, porque ele é vítima do assunto. Não dá para ter um afastamento psicológico, emocional, muito grande da situação. Num caso de gerenciamento de crise, por exemplo, só para fazer um paralelo, você nunca coloca parentes da vítima para negociar com um sequestrador, porque elas estão emocionalmente comprometidas. Então, você coloca pessoas isentas, que tenham capacidade de decisão naquele momento. O ministro da Justiça, por ser vítima, por estar sofrendo tantos ataques, justamente por conta dessa invasão da privacidade dele, o mais sensato é que ele se mantenha inclusive longe de manifestações públicas a respeito da investigação.
O melhor, no momento, é aguardar a investigação terminar, todas as conclusões, e aí, depois que tudo estiver publicizado, se ele quiser fazer manifestações, faz parte, como qualquer outra vítima poderá fazê-lo.
Agora, atuando como ministro da Justiça e, assim, ativamente entrando em contato com vítimas, dizendo que elas foram hackeadas, não é adequado para ele na posição que ele está.
BBC News Brasil – Teria sido uma decisão mais sensata do ministro se ele tivesse se licenciado do cargo enquanto a investigação ocorre, já que ele está diretamente implicado no caso?
Paiva – Acho que não teria necessidade de ele se licenciar porque ele não faz parte da investigação efetivamente. Ele não deve ter acesso a nenhuma investigação. Então, ele não precisaria se licenciar, ele só precisaria não se manifestar, para que ninguém nem discuta se ele está tendo acesso a dados sigilosos da investigação.
No ano passado, quando o presidente da República, Michel Temer, estava sendo investigado, não se questionou tanto que ele tivesse que se afastar do cargo (isso dependeria de aprovação do Congresso, o que não ocorreu). Só se questionou que ele não fizesse pressão em cima da Polícia Federal que estava fazendo investigação sobre ele. As vezes em que ele se manifestou, nós reclamamos.
Então, no nosso entendimento, não há necessidade alguma do ministro da Justiça se afastar. Ele tem tantas outras obrigações, tem atribuição até nada a ver com a Polícia Federal. As atribuições dele em relação à Polícia Federal são de garantir os meios, de coordenar apenas o órgão dentro da pasta. Ir lá, se imiscuir no meio de uma investigação, não é o papel dele, não sendo papel dele não tem porque ele se afastar. O problema nesse ponto é ele se manifestar a respeito de uma investigação que está em andamento e falar de dados que deveriam ser sigilosos.
[Nota da redação: o afastamento compulsório do Presidente da República para abertura de processo penal só é possível em caso de autorização do Congresso, o que não ocorreu no caso de Temer. No entanto, o entendimento do STF é que a investigação pode continuar sendo realizada, aguardando-se o fim do mandato para eventual abertura de processo, como de fato ocorreu com Temer]
BBC News Brasil - Justamente por ele estar falando de dados sigilosos, parece que ele teve acesso à investigação. Isso pode significar algum erro da equipe da Polícia Federal que está nessa investigação? Pode ter havido algum constrangimento que levou a Polícia Federal a passar as informações ao ministro?
Paiva – Você entende que acaba mesmo criando uma situação complicada, porque você tem um ministro da Justiça que pode estar querendo saber algumas informações, e aí cria sim um constrangimento. Eu não sei de que forma isso ocorreu, como o ministro da Justiça sabe de determinadas vítimas, ou se entenderam (na equipe de investigação) que ele poderia saber ao menos das autoridades mais importantes, mais sensíveis, que foram hackeadas. De repente ele soube desses dados, mas, em tese, para nós, o mais confortável seria que ele não soubesse de nada. Seria que ele mantivesse um afastamento, não do ministério da Justiça, mas desse caso específico, porque é um caso em que ele é vítima.
BBC News Brasil - Ele justificou que a PF lhe informou do ataque hacker a Bolsonaro por ele ser presidente e ser uma questão de segurança nacional. O senhor acha que a PF poderia ter diretamente avisado o Gabinete de Segurança Institucional?
Paiva – Investigação em andamento não deve ter nenhum tipo de informação repassada para terceiros, a não ser que haja um risco iminente às vítimas, às pessoas. Digamos que em outra investigação você tenha dados de que uma pessoa será morta, sofrerá um atentado, aí sim você quebra esse sigilo e atua porque a vida da pessoa é mais importante que a investigação.
Não sei dizer se no caso do Moro havia um risco, uma urgência, dentro dessa investigação. Se havia, ele devia ir a público explicar, por qual motivo ele se antecipou dessa forma. Se fosse o caso, (a comunicação às vítimas) deveria ter sido feito pelo juiz da causa, pelo delegado que faz a investigação com autorização judicial. Há várias maneiras de fazer sem que o ministro que é o principal alvo, o principal prejudicado por essa atuação criminosa dos hackers, tenha que se envolver diretamente.
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