Em seu novo livro "O Verdadeiro Criador de Tudo", o médico e neurocientista explica como as características biológicas do cérebro modelaram nossa história, nossos mitos e o universo humano. Em entrevista ao RFI Convida, o professor afirma que a vida digital está reduzindo nossa empatia, fala como a neurociência ajuda a explicar a pandemia do coronavírus e diz que este é o momento mais desafiador de sua longa carreira científica.
Renomado mundialmente por suas pesquisas em neurociência, o professor da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, dedicou os últimos cinco anos da sua vida a escrever um livro que coloca o cérebro no centro da história humana.
O título, que fecha uma trilogia, traz narrativa que costura informações reunidas em 38 anos de pesquisa de ponta na área biológica com história da arte, da filosofia, o fenômeno das redes de fake news e propõe até mesmo uma explicação para a pandemia.
"Colocamos abstrações, como as lógicas dos mercados, o culto ao consumo desenfreado, o culto ao dinheiro, no centro de nosso universo. Passamos a viver em função delas, com todas as fragilidades que agora estão expostas tão claramente, levando à possibilidade da extinção de nossa espécie em um futuro não tão remoto."
Apesar de ser uma pessoa hiperconectada, com mais de 81 mil seguidores no Twitter, Nicolelis vê com preocupação as maneiras como o uso intenso das mídias digitais têm mudado nosso cérebro.
"Existe um começo de evidência nesse sentido, de que esse processo de reconfiguração está tolhendo os atributos analógicos, está reduzindo a nossa empatia, a nossa capacidade de sociabilização", diz.
Ironicamente, a versão brasileira de seu livro teve lançamento virtual, enquanto ele continua há cinco meses confinado em São Paulo por conta do coronavírus.
Nos últimos meses, Nicolelis tem se dedicado ao combate à pandemia como coordenador voluntário do Comitê Científico de Combate ao Coronavírus no Nordeste, criado a partir do Projeto Mandacaru.
“A pandemia, devo confessar, tem causado um grande impacto em mim e na comunidade científica, por vermos a dimensão e a rapidez com que o mundo foi posto de joelhos. Eu permaneço crente na capacidade criativa humana e na capacidade científica da humanidade. Mas é a situação mais desafiadora que eu já enfrentei em meus 40 anos como cientista”, resume.
Confira os principais trechos desta conversa:
RFI: Por que o cérebro é o verdadeiro criador de tudo?
Miguel Nicolelis: Eu dei esse título porque achei que era o momento das pessoas entenderem que toda interpretação do mundo depende das propriedades biológicas do cérebro humano. Toda nossa visão, toda nossa interpretação e todo o significado conferido ao universo e a tudo que existe nele vem da mente humana. Por isso, eu sugiro que a verdadeira cosmologia humana deveria colocar a mente humana no epicentro dessa cosmologia.
Daí a noção de o cérebro ser o criador de tudo, da nossa história, da nossa descrição do universo, da nossa ciência, dos mitos que norteiam a vida humana desde que nós passamos a andar pelas savanas da África. Tudo aquilo que definiu a civilização humana.
No meio desta pandemia, a ciência veio parar na sala de estar, com todos os conhecimentos que temos e as possíveis soluções para a doença, mas também como alvo de muita descrença. O que muda colocar o cérebro e a subjetividade como o centro da discussão?
Primeiro, a gente consegue entender como é que chegamos nesta pandemia. Na minha opinião, a primeira lição desta pandemia foi expor todas as fragilidades do momento de desenvolvimento criado pela espécie humana e imposto ao mundo todo desde a Revolução Industrial.
Colocar o cérebro no centro elucida essa charada porque mostra essa capacidade de criar abstrações humanas que se transformam em coisas mais importantes que a própria vida humana, a preservação da espécie e a preservação do planeta. Mostra por que a gente chegou onde a gente chegou.
Colocamos essas abstrações, como as lógicas dos mercados, o culto ao consumo desenfreado, o culto ao dinheiro, no centro de nosso universo e passamos a viver em função delas, com todas as fragilidades que agora estão expostas tão claramente, levando à possibilidade da extinção de nossa espécie em um futuro não tão remoto. Essa é a ironia. Criações da mente se transformam em coisas que parecem caídas do céu e essa é uma das grandes fragilidades do cérebro humano: a capacidade de gerar essa abstração e aceitá-la como se fosse uma verdade absoluta.
A ciência tem um caráter subjetivo, não podemos escapar disso. Mas a ciência é a melhor abstração que criamos até hoje para lidar com o universo e lidar com toda a dinâmica de nossa sobrevivência nesse mundo, sob as contingências desse mundo.
No livro, você explica que nosso cérebro recorre a um modelo interno do mundo criado por ele para entender cada nova informação que ele percebe. Como isso acontece?
Este é o coração da minha teoria porque eu defino o cérebro como um sistema relativístico. O nosso cérebro, basicamente, adquire informações desde o início da nossa vida do mundo que nos cerca, através de nossos sistemas sensoriais, e cria um modelo neural do que é o mundo aqui fora e do que são as relações causais do mundo aqui fora.
O cérebro humano cria um modelo neural, que eu chamo de um “ponto de vista”, e dali para frente, para tomar uma decisão ou interpretar algo novo, ele sempre compara essa informação com o modelo interno que ele tem. E é essa colisão do modelo interno com a percepção do externo que ele usa para guiar nossa vida, nossas decisões, nossas percepções. Mas a cada encontro com o mundo exterior, o cérebro tem a capacidade de se autorreconfigurar (chamada de plasticidade cerebral). Então cada encontro com uma nova informação externa é único porque ele gera uma mudança no modelo neural. Nós nunca temos um ponto de vista absoluto, a gente vive nessa colisão do que é o modelo interno e do que vem de fora para dentro.
O que é o conceito de brainet, de redes cerebrais sincronizadas?
O cérebro humano ampliou a capacidade de sincronizar o cérebro de um número muito grande de indivíduos para formar grupos sociais extremamente coesos. Acho que isso está ligado intrinsecamente com o crescimento diferenciado de diferentes áreas do córtex humano e também da conectividade neural. Essa capacidade nos permite não só gerar abstrações mentais, como a noção de deuses ou de sistemas políticos ou econômicos, mas permite transmitir rapidamente essa abstração de tal sorte que um número muito grande de cérebros humanos passem a se sincronizar. É uma sincronia literal, neurônios de diferentes cérebros passem a disparar ao mesmo tempo.
Se você passar um filme em duas salas de cinema, uma com chimpanzés e uma com humanos, durante a projeção do filme você vai conseguir sincronizar os cérebros de todos os chimpanzés e de todos os humanos pelos estímulos que estão recebendo. Todavia, quando saírem da sala de projeção, os chimpanzés vão voltar ao seu cotidiano de comer banana e os humanos vão criar fãs-clubes, histórias, enredos, vão se sincronizar nesta brainet.
Eu acho que essa é a chave do grande sucesso do desenvolvimento social de nossa espécie, mas também a explicação de por que existem grandes tragédias antropogênicas. Por que nossa espécie consegue criar guerras, genocídios pelas mais variadas razões. Eu uso a explicação da brainet no livro para explicar o que estava por trás do genocídio de Ruanda [em 1994], como é que aquilo se espalhou tão rapidamente usando o rádio.
A gente pode aproximar essa ideia de brainet com o que acontece hoje com as redes de desinformação e de fake news?
Sem dúvida. Eu mostro como a previsão de Marshall McLuhan nos anos 1950 e 1960, um teórico muito conhecido na área de comunicação, se realizou. O grande medo dele era que se tivesse um meio de transmissão de informação quase tão rápido quanto a geração desse pensamento ou dessa abstração mental, um grupo enorme de pessoas passaria a atuar como um grupo mesmo estando a distância. Ele não tinha conhecimento neurobiológico, mas ele tinha uma intuição muito boa. Esse surgimento, para ele, levaria à perda do referencial do que é verdade, do que é algo factual.
A existência de fake news não é um fenômeno moderno, já existia no Egito antigo, por exemplo. Mas hoje você vê uma pessoa com uma conta no Twitter com mais seguidores do que órgãos de mídia. Então elas conseguem disseminar coisas preconceituosas, uma fake news ou coisas completamente absurdas mais rápido do que órgãos de imprensa ou cientistas ou qualquer outro veículo de comunicação é capaz de desmentir. Então você tem o fenômeno da brainet escalado a uma velocidade exponencial.
Hoje um tuíte sincroniza centenas de milhões de pessoas, dependendo de quem manda essa mensagem. Eu chamo isso de vírus informacionais porque eles funcionam como um vírus. Eles infectam a mente, ativam programas neurais primitivos, como nossa tendência terrível de expressar comportamentos preconceituosos ou ter comportamentos de defesa irracionais, e fazem com que pessoas passem a se comportar em grupo de maneira que elas jamais se permitiriam comportar sozinhas, com comportamentos primitivos, violentos, preconceituosos, racistas, por exemplo.
Isso tem relação com o que você diz sobre a forma como o vício digital está mudando nosso cérebro?
O nosso cérebro não funciona em uma lógica digital. Ele é um sistema predominantemente analógico. Eu defendo a tese de que o comportamento analógico do nosso cérebro gera os atributos mais humanos: a nossa empatia, solidariedade, nossa criatividade, nossa intuição, nossa inteligência, nossa tremenda capacidade de reduzir problemas altamente complexos em coisas muito simples. A minha tese é que a nossa imersão contínua na lógica digital definindo qual o caminho mais rápido para recompensas, do ponto de vista emocional, do ponto de vista social, até do ponto de vista econômico, está mudando o cérebro. O cérebro está se dizendo que ele tem de se adaptar a essa nova lógica, tem que se reconfigurar para essa lógica digital. Existe um começo de evidência nesse sentido de que esse processo de reconfiguração está tolhendo os atributos analógicos, está reduzindo a nossa empatia, a nossa capacidade de sociabilização, nossa intuição, a nossa capacidade criativa.
Tem estudos mostrando que os jovens que têm uma atuação nas redes sociais por várias horas por dia têm problemas de relacionamentos físicos reais. Essa gama de atributos analógicos estão, lentamente, sendo removidos do repertório de comportamentos humanos. Por isso que vemos atitudes surpreendentes, como essa completa falta de empatia humana que eu vejo nos Estados Unidos e no Brasil, por exemplo.
Quis o destino que seu livro fosse publicado em um período em que, há meses, por conta do coronavírus, estamos vivendo ainda mais no mundo digital.
É quase irônico. Eu terminei o livro no final de 2018 e eu menciono no texto a possibilidade de, se continuarmos no mesmo trajeto, com a remoção de atributos humanos da nossa mente e explorando as fragilidades do modelo de desenvolvimento do mundo, a possibilidade de vivermos eventos cataclísmicos, como uma pandemia.
Uma pandemia que sai fora do controle pela redução dos investimentos nos sistemas de saúde pública, em ciência, nos sistemas de detecção precoce de uma pandemia. Um ano e meio depois estamos vivendo uma situação como essa.
Dei palestras recentemente com o título: “Como a neurociência explica uma pandemia”. A explicação é essa. Como o nosso cérebro foi esculpido recentemente a ponto de alçar uma abstração mental, como a teoria dos mercados e a subserviência à teoria dos mercados, e nos deixar expostos às fragilidades que podem a qualquer momento acabar com nossa civilização.
Criamos um modelo de desenvolvimento e não paramos para pensar nessas fragilidades porque a prioridade era ganhar dinheiro. Olha onde nós chegamos.
Apesar desse alerta, você tem um tom otimista ao final do livro, com uma saída para nossa trajetória rumo a auto-aniquilação. Nos últimos meses, você está fazendo sua quarentena no Brasil, e, apesar de ser neurocientista, tem se dedicado a um trabalho mais próximo da epidemiologia, no Comitê Científico de Combate ao Coronavírus do Nordeste. Para a crise sanitária, qual é a saída que você vê?
Essa é uma ótima pergunta. Coincidentemente, eu comecei minha carreira na Universidade de São Paulo, com epidemiologia. E agora, 36 anos depois, eu me vi tendo que me atualizar para trabalhar ajudando no comitê, tentando sincronizar um grupo muito grande de cientistas.
A pandemia trouxe a realidade de que se a humanidade não investir em grandes sistemas de saúde públicos e em ciência de ponta, ela realmente está se colocando em um funil que vai nos conduzir a um abismo muito mais rápido do que se imaginava. Falávamos sobre o aquecimento global e o efeito em algumas décadas. Na realidade, nós estamos tendo como resultado da invasão de ecossistemas selvagens o espalhamento de vírus como esse que nos atingiu em nível global. Claramente aceleramos esse processo de risco. Atingimos hoje 750 mil óbitos no mundo pelo coronavírus.
Eu continuo otimista porque acredito na ciência e acredito que uma hora vai cair a ficha na sociedade de que nós precisamos investir em saúde pública e ciência globalizada. O problema é que a crise acontece em um momento em que o mundo está sofrendo com a falta de lideranças políticas de grande peso. Não temos um grupo de pessoas capazes de trazer propostas para o planeta porque o planeta evidentemente não aguenta mais o dano que nossa espécie está causando.
A pandemia, devo confessar, tem causado um grande impacto em mim e na comunidade científica, por vermos a dimensão e a rapidez com que o mundo foi posto de joelhos. Eu permaneço crente na capacidade criativa humana e na capacidade científica da humanidade. Mas é a situação mais desafiadora que eu já enfrentei em meus 40 anos como cientista.
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