A crise política na Venezuela se agrava a passos largos desde que Juan Guaidó se autoproclamou presidente interino do país, em 23 de janeiro. O oposicionista não reconhece a legitimidade da reeleição de Nicolás Maduro no ano passado.
O tamanho do desafio que a medida representa para a permanência do presidente venezuelano no poder logo ficou claro: os Estados Unidos anunciaram, também em 23 de janeiro, que reconheciam Guaidó como presidente interino. Ao todo, 42 países já declararam apoio a ele, incluindo o Brasil.
O isolamento de Maduro se acentuou na última segunda-feira, com quase duas dezenas de países da União Europeia também reconheceram Guaidó, entre eles Alemanha, França e Espanha. O mesmo ocorreu com a maioria dos países latino-americanos integrantes do Grupo de Lima, exceto o México.
O governo de Maduro, apoiado por 14 nações (entre elas Rússia e China), considera que os movimentos de Guaidó são uma tentativa de golpe de Estado, dirigida pelos Estados Unidos. O objetivo, diz o líder chavista, seria remover do poder um "legítimo ocupante". Guaidó e os países que o apoiam, por outro lado, dizem que a Venezuela não tem um governante eleito em um processo justo e constitucional.
O embate tem sido acompanhado de protestos na Venezuela, contra Maduro e a favor dele.
Mas quais são os efeitos práticos a autoproclamação de Guaidó, presidente da Assembleia Nacional venezuelana, e do crescente apoio internacional?
Reconhecimento simbólico X efeitos reais
"(Guaidó) não tem controle efetivo (na Venezuela). Portanto, se trata de um reconhecimento mais simbólico que real", afirmou à BBC News Mundo Carlos Malamud, pesquisador sobre América Latina no Real Instituto Elcano.
O especialista avalia que o amparo é uma forma de pressão de parte da comunidade internacional, visando que Maduro se afaste da Presidência e que novas eleições sejam convocadas. "Guaidó é reconhecido (presidente) com a confiança de que possa convocar eleições. Mas os governos sabem das limitações existentes."
Uma coisa é o aspecto simbólico, meramente retórico, de apoiar uma "figura que pode favorecer a transição". Outra, muito diferente, é "cortar laços com quem tem o poder de fato", afirma Malamud.
Mas o apoio a Guaidó já gerou consequências práticas importantes em alguns países, principalmente os Estados Unidos. Maduro mandou fechar todas as embaixadas e consulados e o retorno de todo o corpo diplomático venezuelano.
Os Estados Unidos, por sua vez, entregaram a Guaidó a autoridade sobre as contas oficiais da Venezuela no Federal Reserve Bank, em Nova York, e em outros bancos assegurados pelos Estados Unidos. Anunciaram ainda sanções contra a estatal venezuelana do petróleo, a PDVSA. Segundo o conselheiro de segurança nacional da Casa Branca, John Bolton, essa medida poderia bloquear US$ 7 bilhões em ativos e evitar lucros de US$ 11 bilhões em exportações no próximo ano.
Para Temir Porras, que foi assessor de política externa de Hugo Chávez e colaborou com Nicolás Maduro quando este foi chanceler, essa situação é "um escândalo do ponto de vista do direito internacional".
"O Departamento do Tesouro assume o controle das contas da Venezuela no exterior e decide unilateralmente que os ativos do país são do governo de Juan Guaidó. Isso é um roubo", diz Porras, que abandonou a vida pública em 2013 e agora é professor de Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos de Paris, na França.
Porras não nega o estado "catastrófico" da economia venezuelana e avalia que a situação do país é "insustentável". Mesmo assim, afirma que o reconhecimento internacional dado a Guaidó é um "disparate absoluto".
"Na Espanha, houve uma crise constitucional. O que teria ocorrido se a Bélgica tivesse reconhecido Puigdemont?", pergunta Porras, fazendo referência ao ex-presidente do governo catalão, que decretou a independência da Catalunha e foi embora para a Bélgica para não ter que responder perante a Justiça da Espanha.
Além das medidas tomadas pelos Estados Unidos, a Colômbia anunciou que proibirá a entrada no país de mais de 200 pessoas, por serem "colaboradores da ditadura de Nicolás Maduro".
Enquanto isso, Guaidó nomeou "representantes da Venezuela" nos Estados Unidos, Canadá e em vários países latino-americanos, entre eles Argentina e Chile. A decisão foi recebida com certa confusão, já que não estão claras quais seriam as atribuições desses representantes, nem o que vai acontecer com os embaixadores venezuelanos oficiais, nomeados pelo governo de Nicolás Maduro.
Diplomatas de Maduro X representantes de Guaidó
Na Espanha, diversos meios de comunicação aventaram que o representante de Guaidó na região, ainda não nomeado, não tentará ocupar o cargo de embaixador, mas atuará como um enviado político. Dessa forma, poderia dividir espaço com o atual embaixador da Venezuela.
Assim, a Espanha evitaria o risco de que Maduro expulsasse o embaixador espanhol na Venezuela - medida que deixaria em uma situação difícil os milhares de espanhois que vivem no país sul-americano.
Por outro lado, o ministro das Relações Exteriores da Venezuela, Jorge Arreaza, declarou em uma entrevista recente que o foco de Caracas não está na Europa, nem mesmo na América Latina, mas nos Estados Unidos. "De lá está sendo dirigido o golpe de Estado, de lá estão subordinando os países da América Latina, da Europa."
"Acredito que haja uma ambiguidade nos governos da Europa, que dizem que reconhecem um, mas que seguem mantendo relações com outro", acrescentou. "Nós sempre demos muita atenção para as comunidades europeias (que vivem) na Venezuela, e seguiremos fazendo isso".
Já nos Estados Unidos, a embaixada venezuelana permanece fechada. O representante de Guaidó não tem acesso ao edifício.
Exército ainda apoia governo de Maduro
Para Sandra Borda, analista política colombiana e professora da Universidade dos Andes, o reconhecimento internacional dado a Guaidó é, sobretudo, "uma jogada política para pressionar por uma transição" na Venezuela. "Se isso não se traduzir em uma pressão social para que o regime caia, não vai significar nada", acrescenta.
O analista político Jorge Galindo, baseado na Colômbia, tem um ponto de vista parecido. "Como em qualquer Estado, o monopólio da violência está nas mãos do Exército. O reconhecimento (internacional) só é útil se a oposição for capaz de utilizá-lo para convencer os pragmáticos dentro do regime."
Com a chegada de Chávez ao poder pelo voto, em 1998, as Forças Armadas passaram a se infiltrar em todas as instâncias do Estado venezuelano. Mas o preço do apoio dos quartéis a Chávez foi alto. Além do loteamento de cargos estatais, o chavismo franqueou aos comandantes aliados generosos espaços em diferentes setores da economia venezuelana - lícitos ou não.
Mesmo com a oferta e o crescente apoio externo a seu movimento, Guaidó assistiu a alguns episódios esporádicos de dissidência nos quartéis, mas ainda insuficientes para retirar definitivamente o suporte das Forças Armadas que mantém Nicolás Maduro no poder - apesar do país estar quase falido.
Quem apoia Guaidó argumenta, por exemplo, que as eleições presidenciais de maio de 2018 na Venezuela foram fraudulentas, pois não teriam sido plurais nem teriam respeitado os princípios democráticos. A Assembleia Nacional, controlada pela oposição, considera que Maduro está usurpando o poder, por ter sido eleito em votações que não foram reconhecidas pelos Estados Unidos, pela União Europeia e por muitos outros países.
Já para Temir Porras, ex-assessor de Chávez e Maduro, a questão de fundo é que na Venezuela "não existe acordo político de coexistência democrática". "Em 2014, o partido de Guaidó já não reconhecia Maduro como presidente legítimo", diz Porras, para quem o reconhecimento internacional a Guaidó não vai acabar com a polarização política na Venezuela.
"Se a força política de Guaidó toma o poder, quem será a oposição? Quem vai se sentar na Assembleia Nacional", pergunta. "A única saída, a única solução razoável para o problema político na Venezuela é um acordo político interno".
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