Sobre o palco, a túnica dá lugar a um tubinho preto ou um vestido de lantejoulas douradas. Uma atriz travesti dá vida a um Jesus Cristo transexual, que, durante uma hora, realiza um sermão sobre os preceitos de amor, empatia e respeito ao próximo. A obra O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Rainha do Céu —escrita e interpretada originalmente pela britânica Jo Clifford, de 68 anos, mulher trans e católica praticante que usou o teatro para conciliar suas identidades— estreou no Brasil em 2016 e, desde então, vem sofrendo ataques e tentativas de censura (algumas concretizadas) nas cidades onde é encenada.
A última delas aconteceu por parte do Festival de Inverno de Garanhuns (FIG), em Pernambuco. Com o tema Viva a liberdade, o FIB 2018 incluía duas sessões da peça, nos dias 27 e 28 de julho. No entanto, dois dias depois de divulgada a programação, no dia 30 de junho, o prefeito Izaías Régis (PTB) e o Secretário de Cultura do Estado, Marcelino Granja, vetaram a apresentação, alegando que a polêmica provocada pela atração causou prejuízo com as parcerias do evento. “O Festival de Inverno de Garanhuns foi criado para unir e divulgar expressões culturais e não para dividir e estimular a cultura do ódio e do preconceito”, diz a nota publicada pela Secretaria de Cultura de Pernambuco e pela Fundarpe, responsáveis pelo FIG.
"O nome disso é transfobia, algo que eu vivencio todos os dias. Não me surpreende mais", afirma Renata Carvalho, 37 anos, protagonista do espetáculo. A obra já havia sido suspensa por decisão judicial em setembro de 2017 em Jundiaí, com uma sentença que afirmava que "a exibição vai de encontro à dignidade cristã, posto apresentar Jesus Cristo como um transgênero, expondo ao ridículo os símbolos como a cruz e a religiosidade que ela representa". A peça também sofreu tentativas de proibições em Salvador, Porto Alegre e no Rio de Janeiro, em junho, por ação do prefeito Marcelo Crivella (PRB). Em Taubaté, a obra foi encenada com a presença de policiais na sala, porque algumas pessoas do público tentaram agredir a atriz.
"Sempre houve uma rejeição à nossa proposta, mas o ambiente político atual é especialmente propício para esse tipo de intolerância e incitação à violência. E o mais surpreendente é que todo esse ódio vem de pessoas que se autointitulam cidadãos de bem e defensores da palavra de Deus", lamenta Natalia Mallo, diretora da obra. Apesar do cancelamento na programação oficial, ela e Carvalho farão as malas nos próximos dias rumo a Garanhuns. Um grupo de artistas locais se organizou para financiar a peça e em dois dias conseguiram o valor necessário. O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Rainha do Céu terá duas sessões no dia 27 de julho e os ingressos já estão esgotados. O local ainda não foi revelado, "por questões de segurança", e, antes do espetáculo, o público será revistado.
A cantora Daniela Mercury, uma atrações do FIG na noite de domingo, aproveitou o palco para criticar a censura da obra. “Me choca profundamente os políticos desse país censurem uma peça de teatro, que censurem uma exposição de arte, de grandes artistas. É de uma petulância absurda. E assim, se nós tivemos protestos de pessoas da religião que não compreendem a arte, que (entendam que) arte não tem dogma, é crítica social, é a reflexão sobre nós e é essencialmente livre”, disse.
O corpo sob ataque
Em suas duas décadas trabalhando no teatro, primeiro interpretando e depois produzindo e dirigindo, Renata descobriu sua identidade como travesti aos 35 anos, justamente durante o processo de preparação para O Evangelho. "Demorei todo esse tempo para me entender porque nem nós mesmas queremos ser travestis. Porque esse corpo já vem incrustado de tantas coisas que, independentemente do que eu faça, sou considerada uma travesti antes de tudo. Nós ainda estamos lutando para ser consideradas humanas, em pleno 2018", desabafa.
A partir do momento em que assumiu essa identidade, começaram os ataques. "Jesus já foi representado como uma mulher negra, como uma criança, o problema ser representado por uma travesti. Pode ser tudo, menos LGBT, menos travesti. O corpo trans é visto como sujo, endemoniado, causa desconforto", diz ela, que garante que a peça tem um enorme respeito com todos os credos. "Inclusive, recebo palavras de apoio de membros de diferentes religiões, espíritas, anglicanos, umbandistas... Um padre me disse outro dia: 'se não fala de amor e vida, não é de Deus'. E é justamente disso que falamos na obra".
Apesar das especificidades da vivência transexual, Renata considera que as tentativas de proibição da peça fazem parte do contexto mais amplo de apropriação de pautas conservadoras por grupos políticos que radicalizaram posturas contra expressões artísticas e intelectuais, como o Queermuseum e a palestra da filósofa especialista em gênero Judith Butler, em São Paulo. Em Salvador, o Instituto Goethe teve que fechar as portas no último final de semana devido a protestos organizados pelo MBL (Movimento Brasil Livre) contra a mostra Cu é lindo, do artista Kleper Reis, que discute gênero e sexualidade. "Não é uma censura contra a Renata. É uma censura contra a arte, em geral", afirma.
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