Um médico, oficial da Polícia Militar do Paraná, e conhecido como Doutor Bacana, está sendo acusado de usar os consultórios dos quartéis para abusar sexualmente de mulheres. O processo, que está em fase final na Justiça Militar, envolve 30 vítimas. A reportagem é de Mônica Marques.
Dor, injustiça: "Ele esfregava a genitália na perna, ele apalpava, ele agarrava assim". Vergonha: “Esse cara, ele acabou com a minha vida. Acabou".
Nada disso se espera de alguém com a missão de servir e proteger a população. Todo ano, milhares de mulheres fazem prova para ingressar na Polícia Militar em todo o Brasil. O sonho delas é se juntar às mais de 30 mil policiais femininas que hoje fazem parte da corporação.
“Eu achava o máximo, uma profissão assim que: ‘nossa, eu vou fazer o bem e vou ajudar as pessoas’. O fato de você andar armada, ser autoridade. Isso era encantador. Eu pensava: ‘nossa, vou estar protegida’", conta uma vítima.
O Fantástico mostra um dos consultórios onde atendia o tenente coronel Fernando Dias Lima. Além de consultas regulares, ele prestava atendimentos de emergência dentro dos quartéis e validava para a PM atestados assinados por médicos civis. Ou seja, mais cedo ou mais tarde, todo policial militar da região tinha que passar pelo local.
A Justiça determinou uma série de mandados de busca e apreensão nesses consultórios para investigar denúncias de que o médico aproveitava esses atendimentos para abusar sexualmente das pacientes.
O tenente coronel Fernando Dias Lima é médico da Polícia Militar desde 2009. Antes disso, tinha sido vereador de Cascavel, no Paraná, e candidato à vice Prefeitura da cidade com o nome de Fernando Bacana. Nos quartéis, ele é conhecido como doutor Bacana. “Muito atencioso com todo mundo. É ‘amada’ daqui e ‘amada’ dali. Ele tratava todos bem”, afirma outra vítima.
O Ministério Público do Paraná afirma que o denunciado "se prevaleceu de sua condição de superior hierárquico para constranger as vítimas com intuito de obter favorecimento sexual".
O tenente coronel responde a processo por 23 denúncias de atentado violento ao pudor e sete de assédio sexual, em batalhões de Cascavel e Foz do Iguaçu e na Academia Policial do Guatupê, em São José dos Pinhais.
Só que o total de mulheres ouvidas pela Justiça é maior: 45. Alguns desses casos já estavam prescritos, mas as vítimas foram ouvidas como informantes durante a investigação. O Fantástico teve acesso a todos esses depoimentos. Serão protegidos os rostos das policiais nos vídeos e os depoimentos, que só existem por escrito, serão lidos por atrizes.
“Ele a chamou na sala e pediu-lhe para deitar na maca e erguer a camiseta. Que pegou o estetoscópio e o posicionou na região dos seios. Com a outra mão, ele apalpava os seus seios”.
“Em todas as consultas que eu fui, ele trancava a porta”.
“Ao me abraçar, ele colocou a mão na minha nádega”.
“Ele colocou o estetoscópio aqui no meu peito, pediu para eu abrir a camisa, e quando ele foi colocar, ele encostou o pênis ereto na minha perna”.
“Várias vezes, ao efetuar a limpeza da sala, a declarante encontrou caixas de Viagra no lixeiro”.
O Fantástico conversou com três mulheres que acusam o doutor Bacana e com o marido de uma quarta mulher. Perguntamos por que levou tanto tempo para que o médico fosse denunciado, já que esses crimes teriam começado em 2011.
“Tinham medo dele. Medo de um oficial, medo de responder processo. Todos os oficiais, eles acabam se juntando e defendendo um. E essa recruta não tem voz”, explica o marido de uma vítima.
“Pelo menos entre os policiais, todos já sabiam, dessa forma dele. Tanto as mulheres quanto os homens. Eles usavam isso até para fazer uma diminuição de nós mulheres. Era com tom machista”, conta vítima.
Os depoimentos são de recrutas, soldados, cabos e até de esposas de policiais militares que se consultavam nos quartéis. A situação só mudou quando uma oficial se tornou vítima, em fevereiro de 2018: "Só precisou de uma primeira denúncia para brotar várias outras".
“Ele colocou o estetoscópio por baixo de sua camiseta e a declarante percebeu que ele encostava um pouco das mãos e que ele ficava somente nos seus seios e não no tórax. A declarante começou a suar, pois estava nervosa e reclamou disso. O doutor Fernando disse que ela precisaria de alguém para apagar seu fogo e ficou repetindo isso durante algum tempo”.
“Aí eu sentei na maca, aí ele falou assim para mim: ‘abre as pernas’. E eu abri um pouco as minhas pernas. Daí ele pegou e abriu as minhas pernas. Daí ele veio no meio das minhas pernas, e eu comecei a sentir ele ali. Ele pegou o estetoscópio e vinha nos meus peitos. Na abertura da blusa, assim. E aí ele começou a pegar no peito e vinha querendo cheirar o meu pescoço, sabe? Aí eu comecei a passar mal com aquilo. Aí eu saí da sala, passei a mão na bolsa para pegar a minha arma e me dar um tiro na cabeça. Eu fiquei tão fora da 'casinha'. A minha arma não estava na bolsa. Eu tinha deixado ela em casa”, relembra vítima.
Uma pesquisa de 2015 revela que 25% das mulheres que atuam em alguma instituição policial já sofreram assédio sexual. Entre as que sofreram assédio, só 12% registraram o crime. Prestar queixa nem sempre encerra a questão: “Ser vítima de assédio já é difícil, agora tentar desabafar e ninguém acreditar é pior ainda”.
“O que causou nessas famílias, eu até imagino. Porque eu sei o que causou na minha”. “Ela ficou destruída. Na verdade, a nossa família destruiu. Até hoje a gente vem tendo problemas, até conjugais, por conta disso”, revela marido de uma das vítimas.
E quando o abusador é um superior hierárquico, cresce o medo de represálias. “Até hoje tem gente sendo perseguida”, destaca outra vítima.
“Ela foi colocada em trabalhos degradantes, em jornadas extenuantes e trabalhos humilhantes. Toda vez que ela chega em casa, às vezes chorando, eu mesmo peço para ela sair da corporação. Porque não vale a pena”, relata o marido de uma das vítimas.
O doutor Bacana também responde por supressão ou ocultação de documentos. Imagens do circuito interno do 5º Comando Regional Da Polícia Militar, em Cascavel, mostram soldado que era secretária dele. No dia 22 de março de 2018, dois dias depois do médico ser afastado, ela recebeu uma ordem: “Ele me pediu para que eu levasse para ele os prontuários, porque os prontuários eram coisa que só eu e ele tínhamos acesso. Ficava guardado chaveado. E contém informação dos pacientes. Então, ele me deu a ordem e eu levei para ele”.
No dia seguinte, a soldado voltou para buscar mais. “Foi na primeira semana em que ele foi afastado”, contou Fabiana.
Como a polícia não localizou as fichas das pacientes nos consultórios, pediu à Justiça um mandado de busca e apreensão para a casa do médico, onde os documentos foram encontrados. Também foram apreendidas gravações que o próprio médico fazia das suas conversas telefônicas. Ele parecia fazer ameaças: “Não passa um dia sequer sem eu pensar nisso, ir lá pegar uma arma, comprar uma arma, e fazer uma merda, sabe? Eu ia me prejudicar depois que eu prejudicasse uns três, sabe?”.
No dia 25 de maio de 2018, o médico foi preso preventivamente, mas foi solto dez dias depois, se comprometendo a não deixar a região de Cascavel, não usar armas e a se afastar da função pública que exerce.
“Ficava com a porta do banheiro aberta enquanto trocava de roupa, inclusive durante atendimentos”. "Em vez de apalpar só o tornozelo, ele apalpou com as duas mãos a perna inteira, enfiou os dedos por baixo do meu short até na região da virilha". "Ele chegou, me abraçou, encostou tudo e me puxou. E ficou fazendo barulho no meu ouvido ali. Fungando, literalmente, no meu cangote, né?"
A assistente do doutor Bacana foi inocentada do crime de ocultação de provas. A Justiça Militar entendeu que ela estava cumprindo ordens. Na opinião dela, o médico é inocente das acusações de abuso.
“Eu também sou uma autoridade. Então, se eu tivesse sido assediada ou se eu visse, como eu nunca vi alguém saindo chorando e pedindo socorro de lá, eu não ia omitir isso. Só que eu também não vou ser conivente com esse tipo de mentira”, defendeu Fabiana Gomes Freitas, soldado Gomes.
A repórter Mônica Marques falou com o tenente coronel Fernando Dias Lima, que está afastado de suas funções e continua recebendo um salário de R$ 26 mil. Por telefone, o médico negou que tenha abusado de qualquer mulher.
“Isso eu posso te afirmar, em plena convicção, perante a Deus, que não. E que todos esses fatos surgiram depois de denúncias que eu estava fazendo em relação à polícia. À Polícia Militar. A gente só pode falar aquilo que a gente pode provar. Foi após algumas cobranças que eu tava fazendo. Mera coincidência, talvez. Eu sempre recebi muitos elogios na forma de tratamento que é peculiar do carioca. Nós, cariocas, somos mais humanos, somos mais humanizados, mais hospitaleiros. Então, na forma de tratamento, talvez alguma pessoa possa ter confundido alguma coisa”, disse.
O advogado do tenente coronel, Zilmo Girotto, também falou ao Fantástico: “Não existe uma prova material que possa incriminar o tenente coronel Fernando Dias Lima. Uma policial que se diz assediada, ela volta três consultas depois do suposto assédio sozinha, sem o marido, sem o companheiro, sem nada. Uma mulher volta pra ser consultada por seu assediador cinco, seis, oito, dez oportunidades novamente?”, questionou.
"Todas faziam tratamento particular por fora com seu médico específico e pra Via Militar tinha que ter um carimbo de um médico militar. Pra ser aceito na nossa ficha", explica vítima.
Em nota, a Polícia Militar do Paraná afirmou que não há dificuldades em apurar denúncias sobre estes tipos de delitos, mas que o assunto de abuso sexual induz erroneamente as vítimas a não procurarem a administração. A nota ainda diz que a polícia possui um serviço de atendimento psicológico para quem passa por traumas como os dessa reportagem.
O Conselho Regional de Medicina do Paraná abriu uma sindicância para apurar se o tenente coronel cometeu infração ética. “Uma vez considerado culpado, ele pode receber cinco tipos de penas. Desde a mais branda, que é uma advertência confidencial, até à medida extrema, que é a cassação do registro profissional”, afirma o presidente do Conselho Regional de Medicina – PR, Roberto Yosida.
“Ele chegava a agarrar, ele segurava. Agarrava eu e ficava aquele cheiro de perfume, aquele cheiro forte. Aquele cheiro horrível. Eu sabia que era uma situação complicada, que eu devia ter falado alguma coisa. Devido a ele que, na época, era major e eu era soldado”.
“Entrou no consultório e o médico chaveou a porta. Ele a beijou no rosto e abraçou muito forte, aproximou também o quadril, como se estivesse rebolando, com a finalidade de encostar as partes íntimas na ofendida. Como ele a abraçou muito forte, ela não conseguia que ele se afastasse”.
“Ele mesmo abriu a minha calça ao invés de ter pedido para que eu fizesse isso. E eu estava ali por motivo de dor no estômago. Ele apalpou toda a região do abdômen, inclusive a região dos meus seios, colocando a mão dele por baixo do meu top”.
“Ele enfiou a mão por baixo do meu vestido, passando as mãos nas minhas pernas até chegar na minha barriga. Foi aí que eu percebi que ele estava excitado, né?".
As penas previstas para os crimes de atentado violento ao pudor, que são os casos em que houve contato físico forçado, variam de dois a seis anos de prisão. Um a dois anos para assédio sexual. Para supressão ou ocultação de documentos, a pena é de dois a seis anos de reclusão.
“Da Polícia Militar, eu gostaria que eles tivessem o mínimo de preparo, para lidar com uma vítima de um crime desses. Minha esposa foi vítima de um crime, entrou numa situação psicológica ruim. Mais de 50 anos que as mulheres fazem parte dos quartéis e a gente está caminhando para trás. Como a gente pode permitir isso ainda?”, lamenta o marido de uma das vítimas.
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