Manifestantes opositores do governo federal autodenominados "antifascistas" que tiveram o nome e dados pessoais divulgados em um dossiê vazado relatam que estão com medo de perseguições e tiveram de trocar números de telefone e apagar contas pessoais em redes sociais.
O documento com cerca de mil nomes com fotos, números de telefone e endereços gerou a abertura de ao menos duas representações no Ministério Público de São Paulo (MP) contra o deputado estadual Douglas Garcia (PSL-SP), acusado por parlamentares do PSOL e pelo Conselho Estadual de Direitos Humanos (Condepe) de ter compilado e vazado o documento.
O deputado confirma que fez um dossiê contra opositores, mas nega que tenha divulgado as informações. Segundo ele, o material foi entregue à polícia, mas a Secretaria de Segurança Pública (SSP) afirma que não recebeu o documento. O Ministério Público paulista informou nesta sexta-feira (5) que vai analisar os pedidos de representação contra o parlamentar.
As cerca de mil pessoas que tiveram dados pessoais expostos no dossiê divulgado têm procurado assessoria jurídica para buscar reparação. A reportagem conversou com um homem que está na lista e procurou auxílio jurídico. Com medo de perseguição, ele não quis se identificar.
"Por que eu fui exposto em uma lista como se fosse um criminoso? Eu sou um pai de família, contador. É loucura a gente se expressar politicamente nas redes sociais e ser perseguido por isso", diz ele.
"A sociedade civil tem que reagir a isso, e reagir dentro da lei, das instituições", afirma o contador, que integra um grupo assessorado por quatro advogadas. "Algumas das pessoas na lista são professores da rede pública. Tem um professor de 65 anos, prestes a se aposentar. Outra, uma professora da periferia, que já recebeu ligação da diretora da escola ameaçando de demissão [depois da divulgação do dossiê]. E listam essas pessoas como se fossem vândalos, terroristas", diz o contador.
De família espanhola, o homem conta que sua família veio ao Brasil para escapar da ditadura de Francisco Franco (1936-1975). "Minha família veio fugida do fascismo espanhol. Agora meu pai, que tem 72 anos, disse que estava orgulhoso por eu ser identificado como antifascista."
Um programador de 29 anos que também está na lista contou à reportagem, sob condição de anonimato, que encerrou todas as contas dele nas redes sociais e trocou o número de telefone após descobrir que os dados pessoais dele estavam no dossiê.
"Estou apavorado, principalmente depois de saber que o dossiê teria circulado em grupos neonazistas. Comecei a receber mensagens e pedidos de amizade nas redes sociais de muitas pessoas desconhecidas e perfis estranhos e resolvi cancelar todas as contas. Já solicitei à minha operadora a troca de número do celular e avisei aos meus pais para apagar o número antigo. É um absurdo ter que passar por esse pavor em 2020, em plena democracia", afirma o rapaz.
Ajuda profissional
Um grupo de profissionais de direito de São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná disponibilizou o e-mail diretasdedireito@gmail.com para receber mensagens de quem se sentiu lesado e oferecer orientação jurídica gratuitamente às vítimas.
"Orientamos a fazer boletim de ocorrência e a procurar advogados para promover ações de indenização moral e responsabilização criminal", diz o profissional de direito Tássio Denker.
O grupo recolhe as informações para na próxima semana também protocolar uma representação junto ao MP-SP, a exemplo do que já foi feito pelas deputadas estaduais Isa Penna (PSOL) e Mônica Seixas, da Bancada Ativista e pelo Condepe.
Segundo Denker, mais de 300 pessoas com os nomes listados no dossiê já entraram em contato com o grupo de advogados. "Vamos pedir a apuração de improbidade administrativa do deputado Douglas Garcia pelo uso da máquina pública com finalidade de perseguição política, e que se garantam os direitos constitucionais de intimidade e privacidade dessas pessoas, ou seja, pedir que o MP atue para fazer cessar o compartilhamento dessa lista", diz ele.
Pedido de cassação
Por causa do dossiê, as deputadas estaduais da Bancada Ativista do PSOL, entraram com um pedido de cassação do mandato do deputado Douglas Garcia (PSL-SP) nesta quinta-feira (4) no Conselho de Ética da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). As deputadas avaliam o ato como "um claro estímulo à perseguição das últimas manifestações em defesa da democracia do último domingo (31)".
O deputado Douglas Garcia já negou, em rede social, que a lista que começou a circular nessa semana nas redes sociais seja a mesma que ele compilou e diz ter entregue às autoridades. O deputado também disse que também pediu a cassação das duas deputadas do PSOL por supostamente mentirem sobre ele no caso.
“Também estou pedindo a cassação do mandato das deputadas do PSOL que estão mentindo e me acusando de algo que não fiz”, escreveu Garcia em uma rede social.
"O deputado Douglas Garcia não vazou os dados que recebeu, só entregou às autoridades competentes. As listas que terceiros estão vazando nas redes sociais não são as mesmas encaminhadas pelo deputado à polícia. Estão acusando ele de fazer o que fizeram com ele, mas é mentira. Diante disso, irá processar as pessoas que estão mentindo e o acusando falsamente de ter vazado dados nas redes sociais", completou o deputado em nota enviada ao G1.
Vítimas relatam medo
O chamado "antifascismo" é um movimento de pessoas favoráveis à democracia e contra tentativas de golpes que retirem direitos individuais de manifestação assegurados pelo Estado Democrático de Direito. No dossiê polêmico vazado na quinta-feira (4), há pessoas citadas apenas por terem curtido páginas simpatizantes desse movimento antifascismo em redes sociais, por exemplo.
Um dos grupos citados no dossiê é uma liga que reúne dez times de futebol de várzea de São Paulo e do Rio de Janeiro. De acordo com um dos jogadores de dois times que prefere não se identificar, os atletas da liga sempre se colocaram contra o fascismo, fazendo campanhas de arrecadação e distribuição de alimentos, incluindo minorias em suas partidas e combatendo desigualdades.
“Fazemos coisas que o estado deveria fazer e não faz e por nos posicionarmos há tanto tempo. Já conhecemos a dinâmica, não ficamos surpresos. O que esse deputado está fazendo é uma tentativa de criminalizar pessoas que são contra desigualdades e transformar em criminosos, enquanto isso tem gente na rua defendendo AI 5, ditadura... Então quem pensa contra o que ele defende é criminoso? Faz parte de uma estratégia política criar assunto para desviar do fato de que o Brasil tem 35 mil mortos por Covid-19, de que morre uma pessoa por minuto no Brasil dessa doença, para desviar do assunto de que a verba do Bolsa Família foi destinada para propaganda do governo e tantos outros assuntos. Eles pautam a discussão política de forma que as coisas importantes que estão acontecendo ficam em segundo plano. Esperamos que o Judiciário e as instituições consigam atuar para impedir isso.”
De acordo com pessoas citadas na lista, há três versões do dossiê que circulam nas redes sociais nas últimas semanas. Uma delas inclui um bar do bairro da Bela Vista, na região central de São Paulo, que é conhecido ponto de encontro de antifascistas. O dono do lugar enquanto pessoa física também foi citado em versões da lista.
“O bar foi fundado no início de novembro e nasceu com essa identidade antifascista e progressistas e caiu no gosto das pessoas assim desde o começo. Quando vi meu nome e o do bar na lista fiquei com bastante medo, avisei pessoas próximas e tomei medidas de segurança, como sair nas ruas só com dia claro e nunca à noite, por exemplo, e não fazer nada sozinho”, diz o comerciante.
O proprietário do bar se autodeclara como democrata e diz ver com preocupação a divulgação desse tipo de dossiê.
“Como tem sido nosso mote nas manifestações, somos a favor da democracia. Por mais que eu não goste de opiniões diferentes, eu tenho de aceitar e tolerar. Não posso usar de força para impor meu desejo em cima do outro”, afirma.
Ele diz ter reforçado a segurança do bar nas portas, portões e até a iluminação foi adequada para tentar inibir ataques ao estabelecimento.
Fake News
O deputado do Douglas Garcia já é investigado Ministério Público de São Paulo em um inquérito em que ele e um assessor do gabinete na Alesp são acusados de uso de instalações e equipamentos públicos do gabinete para a propagação de notícias falsas (conhecidas como fake news).
A denúncia aponta ainda a possibilidade de funcionários de gabinetes de outros parlamentares do PSL também terem participado da disseminação de informações falsas nas redes sociais.
Douglas Garcia também está impedido de integrar qualquer CPI da Alesp após ter sido suspenso de seu partido, o PSL, no último dia 29.
Ao abrir representação contra o parlamentar no MP-SP, o Condepe (Conselho Estadual de Direitos Humanos) pediu uma investigação contra ele por infração referente à exposição de dados e imagens na internet, e de improbidade administrativa por parte do deputado.
"Embora seja portador de diferentes atribuições institucionais, não está nenhum parlamentar autorizado a exercer função típica de polícia judiciária, exceto no exercício de prerrogativa de comissão parlamentar de inquérito", afirma no documento o presidente do Condepe, Dimitri Sales.
O Condepe também solicitou ao MP a apreensão e perícia dos equipamentos eletrônicos do parlamentar e seus assessores, além do bloqueio das contas dele nas redes sociais "para a interrupção dos discursos com conteúdo de ódio e subversão da ordem legal".
Defesa
Em uma rede social, Garcia negou ter divulgado o dossiê. “Eu apenas entreguei um documento que recebi, afirmando claramente que seriam supostos integrantes de grupos antifas” afirmou, reiterando que “cabe às autoridades competentes investigar os dados e indícios”.
"É lamentável que achem grave um parlamentar querer que as autoridades competentes investiguem pessoas que possam fazer parte de um grupo que agride opositores, joga rojão na Polícia Militar, faz coquetel molotov, quebra bancos e lojas e que não quer a disputa política institucional e democrática", afirmou a nota do gabinete dele.
O gabinete do parlamentar também informou que o dossiê com os dados dos opositores produzido pelo parlamentar foi entregue na delegacia dentro Alesp e também vai ser levado à Polícia Federal.
"O deputado Douglas Garcia não vazou os dados que recebeu, só entregou às autoridades competentes. As listas que terceiros estão vazando nas redes sociais não são as mesmas encaminhadas pelo deputado à polícia. Estão acusando ele de fazer o que fizeram com ele, mas é mentira. Diante disso, irá processar as pessoas que estão mentindo e o acusando falsamente de ter vazado dados nas redes sociais", informou do gabinete de Douglas Garcia.
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