No novo filme "Sergio", em catálogo na Netflix desde a última sexta-feira, 17/04, uma cena em particular é tocante. Nela, Carolina Larriera, interpretada pela atriz cubana Ana de Armas, tenta passar uma barreira de soldados americanos para chegar aos escombros do prédio da ONU que havia sido alvo de um atentado em Bagdá, no Iraque.
Larriera tentava alcançar o seu companheiro, o diplomata Sergio Vieira de Mello, preso sob o concreto. Naquele dia 19 de agosto de 2003, o brasileiro que atuava como o Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos e era cotado para assumir o comando da ONU, não resistiu e morreu junto a outras 21 pessoas. A organização extremista Al-Qaeda reivindicou o ataque.
Nascida na Argentina e mestre em economia por Harvard, Larriera também atuava nas Nações Unidas. A sala onde ajudava na transição do Iraque pós-Saddam Hussein ficava a poucos metros da de Vieira de Mello. Ela também foi uma das últimas pessoas a falar com o diplomata, por um buraco feito no concreto, pelo lado de fora.
Hoje professora e diretora-executiva do Centro Sergio Vieira de Mello, instituição usada para manter a memória do brasileiro, a viúva se dedica a um livro de memórias. Na época do atentado, o casal planejava oficializar a união, após o divórcio do diplomata com a primeira esposa, mãe do seus dois filhos.
Em 2017, por uma decisão da Justiça do Rio, a união civil entre Carolina Larriera e Sergio Vieira de Mello foi reconhecida, com apoio da mãe do diplomata.
"Ser reconhecida como esposa serviu para proteger um período heroico que merece ser lembrado como foi", conta em entrevista à BBC News Brasil.
Do Timor-Leste a Bagdá
Para Larriera, se o filme dirigido por Greg Barker e com Wagner Moura no papel principal acerta em contar a história do casal desde o encontro no Timor-Leste, ele não é bem fiel aos fatos no momento pós-atentado, no Iraque.
"A única pessoa que foi liberada do buraco onde Sergio estava, que foi regatada pelos soldados americanos, foi um cidadão americano. Não é verdade que o soldado americano tinha o reconhecido."
"Ele tinha um nome impronunciável e certamente esquecível para um soldado - ele era apenas um estrangeiro no momento do resgate das vítimas norte-americanas", ressalta.
Naquele dia, o americano Gil Loescher foi retirado com vida dos escombros, após ter as pernas amputadas.
Em um artigo para a revista Piauí, em 2008, a diplomata norte-americana Samantha Power, autora do livro "O Homem que Queria Salvar o Mundo", sobre Sergio Vieira de Mello, relata que o bombeiro responsável pelo resgate "estava pessimista quanto a Vieira de Mello, imobilizado sob entulhos tão pesados que não via como retirá-lo".
"Eu tinha um plano. Eu tinha que retirar Gil primeiro, depois teria algum lugar onde pôr os escombros, e poderia tentar mover Sérgio para onde Gil estava", disse a Powers o bombeiro paramédico Andre Valentine.
Desde a morte e o funeral de Vieira de Mello, Larriera sempre foi muito crítica à forma como a ONU a tratou no episódio - sem a reconhecer como companheira oficial - e aos esforços medidos durante o resgate em Bagdá.
Segundo o relato da economista argentina, o diplomata planejava ter uma rotina mais calma e só topou a missão no Iraque a pedidos de Kofi Annan, então secretário-geral das Nações Unidas.
"É importante ter noção do descaso em que ele morreu, apesar de ter sido o funcionário mais importante da historia da ONU até hoje", critica.
Larriera e Vieira de Mello se conheceram quando os dois trabalhavam no Timor-Leste, em 2002. Na época, o brasileiro chefiava a administração de transição da ONU no país.
Ela executava projetos para o Banco Mundial e estabelecia iniciativas de microcrédito.
No período, Timor-Leste enfrentava uma sangrenta guerra civil em decorrência de um plebiscito em que foi aprovada a independência em relação à Indonésia.
Os bons resultados diplomáticos obtidos na nação asiática levaram Vieira de Mello ao Iraque, país que estava sob domínio dos Estados Unidos após a queda de Saddam Husseim.
"A biografia dele não poderia ser apenas uma história dos lugares onde ele morou. Quando Sergio exerceu funções no Sudão, em Moçambique e em Bangladesh, era júnior na ONU. Timor-Leste e Iraque foram os lugares onde ele teve o 'passaporte' para estender todo o seu talento", diz Larriera.
Nascido no Rio de Janeiro em 1948, Vieira de Mello teve mais de 30 anos de experiência diplomática internacional. Seu primeiro cargo na ONU foi exercido em 1969.
Na década de 1970, trabalhou em diferentes programas da organização em Bangladesh, Sudão, Chipre, Moçambique e Peru. Nos anos 1990, atuou na repatriação de refugiados do Camboja e foi delegado da ONU na Bósnia-Herzegovina.
O retrato de um 'herói'
A fuga de um estereótipo "latino" é, para Carolina Larriera, o grande trunfo do novo filme.
"Estamos sinceramente cansados de ser reduzidos a simplesmente a 'charmosos' e 'sexys', como se fôssemos 'exóticos'. A gente é preparado, trabalhador e profissional", desabafa.
No longa, Vieira de Mello aparece enfrentando líderes americanos no Iraque e negociando a independência do Timor-Leste com o presidente da Indonésia. Já Larriera apresenta ao diplomata mulheres trabalhadoras do país, numa das cenas mais emocionantes de "Sergio".
A vontade de jogar luz à história do diplomata foi ressaltada por integrantes da produção. Em entrevista à Agência EFE, nos EUA, Wagner Moura disse que os brasileiros "deveriam saber mais sobre quem foi Sergio" e que o filme "pode ajudar".
"Temos que deixar de achar que tudo de fora é melhor, para começar a valorizar nossa própria cultura, pessoas, instituições e os nossos próprios talentos", ressalta Larriera.
Na atual crise global com a pandemia de coronavírus, a viúva acredita que, se estivesse vivo, Vieira de Mello teria papel fundamental para ajudar o Brasil:
"Temos tanto conhecimento adquirido por causa de tantos obstáculos atravessados, que estamos muito melhor preparados que muitos que hoje trabalham no âmbito internacional", conta a viúva, que espera novos documentários e livros sobre a história de Sérgio Vieira de Mello.
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