O passeio no catamarã às 9 ilhas torna-se um tanto desprazeroso se, numa ótica crítica, for analisada a realidade apresentada por trás das belezas do Complexo Estuarino Lagunar Mundaú-Manguaba (CELMM).
Criado em 2009, o Projeto Navegando com o Meio Ambiente – Barco-Escola surgiu de uma multa aplicada pelo Instituto do Meio Ambiente de Alagoas (IMA-AL) a um condomínio de luxo situado às margens da laguna Mundaú-Manguaba, no município de Marechal Deodoro. Para a construção do empreendimento, foi necessário o soterramento de uma grande extensão de mangue - vegetação presente em áreas costeiras, compreendendo a faixa de transição entre os ambientes terrestre e marinho, ocasionando a devastação do manguezal daquela região.
Com o valor da multa, foi construída a base descentralizada do IMA/AL, situada na Ilha de Santa Rita, próxima a Ponte Divaldo Suruagy, no mesmo município. O passeio em um catamarã, com capacidade para 60 pessoas é realizado por uma equipe multidisciplinar composta por biólogos, geógrafos, assistente social e pilotos, todos capacitados para atender associações, igrejas, instituições de ensino público e privado, além do público em geral.
Na maioria das vezes, é por volta das 9h30 que o catamarã parte para o passeio. Segundo o IMA/AL, esse é um dos melhores horários devido a maré cheia. A eco-aula que se inicia ainda na base orienta como a tripulação deve se comportar e faz uma pequena explanação sobre a instituição. Já durante o percurso, os guias abordam conteúdo relacionado à biota local, fauna e flora, além dos impactos causados pela ação humana na região.
Partindo da laguna, já é possível ver a variedade de espécies de mangue e a facilidade do seu desenvolvimento, bem como a degradação da natureza por causa da intervenção do homem. O primeiro desastre ecológico visível, segundo Juliana Costa, assistente coordenadora do projeto, trata-se do aterro construído para a obra da duplicação da ponte Divaldo Suruagy, que faz divisa de Maceió com Marechal Deodoro, e que correspondeu na redução de cerca de 60% do início do canal (encontro das águas doce e salgada), estreitando o acesso da laguna ao mar e provocando a evasão de algumas espécies de peixes que iam para o complexo à procura de alimentos junto à maré de águas salgadas.
Ponte Divaldo Suruagy corta a lagoa Mundaú, entre Maceió e Marechal Deodoro (Foto: Daniele Soares) |
Dos bairros de Maceió banhados pela laguna, Pontal da Barra, também conhecido desde antigamente como Bairro de Dunas, é o primeiro a ser visto durante o passeio, região turística devido às lojas de artigos artesanais que ficaram famosas nacionalmente pela venda de belas rendas e, principalmente, do filé – bordado que se tornou patrimônio cultural imaterial do estado por sua beleza e delicadeza –, além da gastronomia especializada em frutos do mar.
Frutos esses extraídos da própria laguna Mundaú-Manguaba, por meio de outra forma de sobrevivência da região, a pesca. Outro ponto forte do bairro histórico é o Fandango, dança folclórica que resistiu ao tempo e tornou-se mais um atrativo à região.
Famoso bordado "filé" é produzido por artesãs em bairros banhados pela lagua Mundaú, em Maceió (Foto: Daniele Soares) |
A comerciante Dilma Oliveira, com 78 anos de idade e cerca de 70 anos de rendeira, ao ser questionada a respeito da influência da degradação ambiental no fluxo de turistas às lojas de artesanato, foi bem direta: “Os manguezais, coqueirais e as dunas eram um atrativo a mais para a vinda do turista em nossas lojinhas, porque eles vinham tirar foto e aproveitavam para ver o artesanato e vice-versa. Moro aqui desde que nasci, hoje o que vejo é a natureza dando lugar às construções de residenciais e loteamentos. Um absurdo e falta de respeito sem tamanho com a gente e com a natureza”, disse dona Dilma.
Rendeira Dilma Oliveira bordando o filé (Foto: Daniele Soares) |
Assoreamento, fenômeno causado por influência humana
Mas como diz o poeta desconhecido: “nem tudo são flores”. O acesso ao Pontal da Barra, por exemplo, antigamente era feito apenas pelo manguezal, mas, com o aumento do bairro e da população, ele perdeu muitas de suas características, as dunas que ali existiam foram extraídas para abrir caminho e o problema se iniciou.
Com o crescimento desordenado, os moradores, que a princípio não tinham saneamento básico, jogavam (muitos ainda jogam) dejetos na laguna, consequentemente algumas espécies de peixes sumiram da fauna local. O peixe Nero é um exemplo que entrou em extinção devido à poluição das águas, porém, segundo o IMA/AL, algumas espécies conseguiram resistir à sujeira do canal, pelo fato de se alimentarem de esgoto. São elas: Bagre, Mandi e Caruaçu, peixes comuns na região.
Na favela do Dique Estrada, o problema se agrava até hoje, pois, além das necessidades fisiológicas ainda serem descartadas na laguna, a quantidade de lixo jogado às águas continua constante, ação humana que leva ao assoreamento – acúmulo de sedimentos (areia, entulho e lixo, por exemplo) no leito dos lagos, rios e demais cursos de água, principalmente após fortes chuvas. Problema que atinge o complexo diretamente!
Em Maceió, canal pluvial deságua na laguna (Foto: Daniele Soares) |
Segundo a Secretaria de Estado da Infraestrutura (Seinfra), já existe um projeto para obras de esgotamento sanitário no Pontal da Barra. Para a sua execução, foi firmado convênio com o Ministério das Cidades, para o investimento de R$ 3,7 milhões na obra, com recursos provenientes da União e do Governo de Alagoas. Afirmou ainda que no momento, a documentação está em análise na Caixa Econômica Federal, para que, após a aprovação, possam iniciar o processo licitatório.
Sobre o Dique Estrada, a Seinfra informou que o bairro já é contemplado no projeto de esgotamento sanitário da Baixa Maceió – obra já contratada. E que aguarda a liberação dos recursos por parte do Governo Federal, na ordem de R$ 56 milhões, para o início da obra.
O povoado Cadoz, pertencente ao município de Coqueiro Seco, é outro exemplo: lá até existe saneamento básico, porém, a pesca do massunim, marisco comum da região e que faz parte da economia local, chega ao povoado com menos intensidade por causa do assoreamento das águas.
Em contato com a assessoria de comunicação de Coqueiro Seco, não obtivemos resposta a respeito do problema citado, devido à ausência do responsável pela pasta, até a conclusão desta matéria.
Outro problema causado pelo assoreamento foi a interdição do Barco Coletivo, que funcionava como um meio de transporte fluvial fazendo o condução de moradores dos municípios de Santa Luzia do Norte, Coqueiro Seco, Marechal Deodoro e Maceió. Ele precisou ser desativado há cerca de 10 anos por conta da dificuldade em passar pelo canal, efeito do acúmulo de sedimentos, que inclusive tornam-se visíveis quando a maré está baixa.
Para José Rubens, piloto do barco-escola, o passeio à laguna está com os dias contados, pois, a cada ano o percurso diminui devido ao assoreamento: “Há cerca de um ano que não faço o passeio completo em torno de todas as ilhas, creio que em menos de seis anos dificilmente conseguiremos concluir o trajeto pelo canal, os bancos de areia estão aumentando, corremos o risco de encalhar”, comentou o piloto.
Sobre o aumento e consequências do assoreamento, a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos (Semarh) informou que esse fenômeno provoca a perda do volume de água na laguna, deixando-a mais rasa e com maior quantidade de alagamentos laterais no canal. Além disso, o aumento de terra culmina com a diminuição de peixes e até mesmo a capacidade de oxigenação para sobrevivência das espécies.
Ao ser questionadasobre a existência de projetos, a Semarh alegou que já existe uma discussão junto à Universidade Federal de Alagoas (Ufal) a respeito de um programa de proteção dos mananciais, especificamente da região do Complexo Estuarino Lagunar Mundaú-Manguaba. Informou ainda que o programa consiste na produção de mudas para recuperação das matas ciliares no Estado, tendo o seu marco inicial na própria laguna, e, em busca de evitar mais danos ao ecossistema da região, ambas traçam estratégias para modificar o atual cenário ambiental.
O primeiro ponto para andamento do projeto trata de visitas de campo, com equipe técnica especializada. O conceito é identificar as áreas nos municípios que irão receber as mudas para recuperação das matas ciliares.
Tanto a Semarh quanto a Ufal se organizam para realizar o plantio em parceria com os municípios de Maceió, Marechal Deodoro, Pilar, Satuba, Coqueiro Seco, Santa Luzia do Norte e Rio Largo, que estão localizados no entorno do Complexo Estuarino Lagunar Mundaú-Manguaba. A próxima etapa já é assinar o Acordo de Cooperação Técnica entre o Estado e a universidade para, num curto espaço de tempo, realizar o plantio das mudas para o bioma da Mata Atlântica.
Segundo o especialista Ricardo César, coordenador do Gerenciamento Costeiro do IMA/AL, com o avanço do processo de assoreamento, em cerca de 80 a 100 anos todo o estuário pode desparecer e tornar-se um grande pântano com profundidade baixíssima de aproximadamente 35 centímetros. Essa consequêcia é fácil de compreender:
“O problema na laguna está se agravando porque existem três fontes de sedimentos despejadas, são elas: o rio Mundaú; a dinâmica oceânica e as drenagens urbanas vindas do canal da Levada e do Trapiche. Segundo um estudo da Agência Nacional de Águas (ANA), foi constado que o processo de assoreamento no complexo é bem significativo, tendo pontos de profundidade máxima de apenas meio metro. Resultado do depósito de sedimentos não só orgânicos (esgoto e lixo), mas, contaminados com produtos químicos, implicando na redução da profundidade. Ou seja, a perda de oxigênio devido à carga orgânica lançada pelos canais aumenta a temperatura e afeta diretamente a biodiversidade, consequentemente a vida na laguna também está sendo reduzida de forma acelerada. Um efeito benéfico seria a dragagem, fazendo isso seria possível uma maior troca de águas, diminuindo o tempo de residência dessas águas e lamas contaminadas dentro do complexo, o que beneficiaria toda a biodiversidade, além de proporcionar navegabilidade e melhora na parte econômica associada à pesca, recreação e outras coisas”, informou Ricardo.
Degradação ambiental, o perigo que mora logo ali
Construída em cima de um manguezal, a favela Sururu de Capote, que a princípio deveria ter dado lugar ao projeto de uma orla lagunar, surgiu da invasão de famílias de baixa renda que se instalaram e permanecem no local até os dias de hoje. A principal fonte de renda dos moradores da favela Sururu de Capote, bem como do povoado Muvuca, instalado na mesma região, é a extração do massunim.
Porém, devido a uma determinação conjunta do IMA-AL e do Batalhão da Polícia Ambiental (BPA), que estabeleceu aos pescadores a extração de apenas um metro e meio de areia da laguna para a armação da caiçara – artefato artesanal utilizado na pesca, sob pena de multa caso não cumpram a norma – a vida de quem sobrevive do ofício dificultou mais ainda com essa limitação, já que, na favela, as famílias vivem em condições subumanas, convivendo em meio a insetos e roedores, drogas e prostituição.
No barco motorizado denominado “Deus é Fiel”, a marisqueira Maria Amélia, de 49 anos, moradora do povoado Muvuca, prefere extrair o massunim na “boca da Barra”, região do bairro Massagueira, pertencente ao município de Marechal Deodoro, do que nas águas da laguna Mundaú-Manguaba, devido à poluição. “Eu deixei de pegar massunim aqui faz muitos anos, a poluição aqui é grande demais, se todo mundo pegasse seu lixo e jogasse lá na frente (na pista principal), seria melhor, mas o povo faz suas necessidades e joga na lagoa, eu não tenho coragem de comer desse massunim, prefiro buscar longe e ter cliente certo”, informou a marisqueira.
Barco motorizado da dona Maria Amélia (Fotoo: Daniele Soares) |
Questionada a respeito da diminuição da quantidade de molusco nos últimos anos, Amélia não demorou a responder. “Já teve tempo, isso tem uns 6 anos, que eu pegava 40, 50 quilos de massunim por dia, aqui nessa lagoa, hoje meu apurado não passa de 10 quilos, ainda bem que eu vendo só pra restaurante, se não minha situação seria pior”, volta a afirmar dona Amélia.
A Prefeitura de Maceió, por meio da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente (Sedet), informou que o Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB) está em fase de finalização. Ele promoverá saúde, qualidade de vida e do meio ambiente, assim como organizará a gestão e as condições para a prestação dos serviços de saneamento básico, de forma que cheguem a todo cidadão, integralmente, sem interrupção e com qualidade.
"O Plano vai abranger todo o território (urbano e rural) do Município de Maceió e contemplar os quatro componentes do saneamento básico, que compreendem o conjunto de serviços, infraestruturas e instalações operacionais, como o abastecimento de água, esgotamento sanitário, drenagem e manejo das águas pluviais urbanas e limpeza, além de manejo dos resíduos sólidos. Todas as ações do Plano já foram definidas e no momento, a Prefeitura aguarda a aprovação do gestor de contrato, no caso o agente financeiro - Caixa Econômica Federal (CEF), para iniciar a fase executora do Plano", informou a secretaria.
Sobre o descarte irregular de lixo, a Superintendência Municipal de Limpeza Urbana (Slum) informa que a limpeza na região lagunar é feita diariamente, tanto a coleta de lixo domiciliar, como a varrição das ruas e o recolhimento das cascas dos mariscos. Afirmou também que a Prefeitura está implantando o Ecoponto do Sururu, que vai recolher as cascas e destinar o material para ser transformado em adubo.
Outro problema que a natureza é forçada a enfrentar é o desmatamento das montanhas de vegetação do povoado Cadoz, em Coqueiro Seco, que aos poucos estão forçadamente dando lugar às favelas, ocasionando maior degradação ao meio ambiente.
Dona Maria Amélia fazendo a limpeza do marisco (Foto: Daniele Soares) |
Educação Ambiental
Levar uma turma de estudantes do ensino médio a um passeio ou aula de campo, além de um desafio, é algo bem produtivo se levar em consideração que a educação ambiental é fator importante na formação de um ser humano consciente. Esse foi o sentimento do professor de geografia José Cléberson. Ele leciona na Escola Estadual Professor Arthur Ramos, no município de Pilar, e agendou o passeio ao complexo lagunar no barco-escola com alguns meses de antecedência, a espera foi grande, mas garante ele que ficou bem satisfeito como resultado. “É muito importante para os alunos conhecer os biomas e principalmente aqueles mais devastados pela ação humana. No Complexo Estuarino Mundaú-Manguaba muitos são os problemas, e esses jovens podem contribuir de forma significativa para uma mudança positiva nesse ambiente. O descarte correto do lixo e esgoto na cidade do Pilar (boa parte é jogado na Lagoa Manguaba) pode reduzir os danos ao meio ambiente e melhorar a qualidade de vida das pessoas que dependem desses lugares para sobreviver. O fato dos estudantes ficarem por dentro dessa realidade, sem dúvidas é algo muito importante”, avaliou o professor.
A aluna Micherlayne Farias, de 17 anos, que nunca andou de barco, ficou surpresa com o passeio e aprendeu tudo direitinho. “Foi uma experiência ótima pra mim, a gente vai sair daqui com a lição de respeitar mais o meio ambiente, respeitar mais as águas e valorizar mais as espécies também! Foi muito gratificante, deu pra tirar uma lição disso tudo, nunca vou esquecer desse dia”, afirmou a estudante.
Residências "invadem" a laguna Mundaú, em Maceió (Foto: Daniele Soares) |
Sobre o procedimento de agendamento para o passeio no barco-escola
As saídas do catamarã são agendadas conforme a tábua da maré, sendo possível navegar em dias e horários de maré cheia, devido ao grande processo de assoreamento em que se encontra a Laguna Mundaú. Porém, havendo necessidade em dias de maré baixa, o barco-escola percorre apenas metade do percurso. O agendamento é feito mediante solicitação formal com ofício pela instituição interessada ao IMA-AL. Para outras informações, deve-se ligar para o número (82) 3315-1732.
* Colaboração para o Correio Notícia
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