O supertime de 2019 acendeu no torcedor do Flamengo a esperança de uma dinastia na América do Sul. Mas nem o Brasileirão conquistado em 2020 esconde que o departamento de futebol rubro-negro não conseguiu corresponder às expectativas criadas há três anos.
Depois da saída de Jorge Jesus, Paulo Sousa é o quarto treinador rubro-negro. Desde janeiro no clube, o português encontra resistências e vê o time enfrentar dificuldades até diante de rivais com elencos inferiores. O fracasso na final do Carioca diante do Fluminense, com atuação ruim nas duas partidas, evidenciou problemas conhecidos no dia a dia.
Ruptura com 2019
– É uma equipe campeã em 2019, que já tem alguns anos. O Marcos Braz e o Bruno Spindel me contrataram sabendo da minha metodologia, da minha liderança, acreditaram em mim. O fato é que tenho as minhas convicções, as minhas ideias, o meu modo de trabalhar.
A declaração de Paulo Sousa na entrevista coletiva após a final do Carioca, no sábado, evidencia que o processo de reformulação que tanto gera atritos no dia a dia vem de cima para baixo. Por mais que o treinador fique exposto e concorde com o diagnóstico da necessidade de mudanças, foram Marcos Braz e Bruno Spindel que listaram "ruptura com os vícios de 2019 e maiores cobranças" como exigências para o novo comandante após o vice da Libertadores.
No entanto, desde 10 de janeiro, quando Paulo Sousa chegou ao Ninho do Urubu, há nítido descompasso entre o timing desejado pela comissão técnica e o que a diretoria se propõe a implementar.
As doses de insatisfação, por outro lado, não os colocam como adversários. Principalmente porque Braz e Spindel sabem que o sucesso ou o fracasso de Sousa cairá em suas contas. Cobrado por torcedores para estar mais presente no clube, o presidente Rodolfo Landim dá autonomia aos responsáveis pelo futebol. Na última sexta, esteve no Ninho mais para apoiar na véspera da final do que para cobrar. Apesar de abrir mão da presidência do Conselho de Administração da Petrobras, Landim tem viagem prevista pelas próximas duas semanas, e as decisões ficam com Braz.
Quando acertou a contratação do goleiro Santos após muita insistência de Paulo Sousa, a diretoria deu um sinal de respaldo ao treinador no processo. Em dezembro, a escolha por Jorge Jesus seria o caminho mais fácil, mas o escolhido foi o oposto: romper (ou tentar romper) com a viuvez presente e nítida no CT que tanto condicionou avaliações de Domènec Torrent, Rogério Ceni e Renato Gaúcho.
Bruno Spindel chegou a reunir funcionários no início do ano e ordenar que eles parassem de ter contato constante com integrantes da comissão técnica de Jorge Jesus, para evitar que a pauta seja tão viva no Ninho. O próprio diretor executivo, por sua vez, não cumpriu o combinado e gerou constrangimento ao levar o preparador físico Mário Monteiro para o jantar do elenco após a vitória por 6 a 0 sobre o Bangu.
Casado com uma brasileira, Mário é o profissional mais querido da comissão de Jorge Jesus. Diante da insistência de jogadores, ele relutou em acessar o local por respeito aos compatriotas portugueses, mas foi convencido e conduzido por Spindel, que o apresentou a Paulo Sousa. Quem viu a cena a relata como educada e constrangedora. Se o desejo é encerrar a viuvez de 2019, por que levar para dentro do ambiente a figura mais querida daquela comissão?
A demora por reforços é outro ponto visto como condicionante para a avaliação da reformulação. Dos cinco contratados, apenas Pablo e Santos foram escolhas do técnico. Fabrício e Marinho não foram pedidos e há divergência sobre Ayrton Lucas. A diretoria vê como pedido, enquanto Sousa entende como oportunidade de mercado, apesar de ter participado ativamente das negociações.
A viagem para a Europa, que se tornou frustrante pelo processo do Banco Central, e a Covid-19 de Braz na volta retardaram as tomadas de decisão solicitadas pelo treinador. A relação entre diretoria e comissão técnica não é das mais próximas. Mas as partes convergem no sentido da reformulação. Até por necessidade de assumir responsabilidade após a escolha por não esperar Jorge Jesus.
Rigidez nos processos assusta elenco
Seja pelo desejo de ruptura com um passado vencedor em 2019 mas que colecionou decepções posteriormente, seja pela forma como tem executado a reformulação, Paulo Sousa encontra resistência em boa parte do elenco. A percepção é de que o processo é conduzido de forma abrupta e sem espaço para diálogos, o que causa insatisfação de quem não joga e de quem tem sido escalado fora de posição. A metodologia de trabalho também encontra resistência e contra-argumentações.
Mais do que a falta de oportunidade de medalhões, há insatisfação pela forma como foi conduzido o rodízio que levou a campo 13 escalações diferentes em 14 jogos. Nomes como Hugo, David Luiz, João Gomes, Arrascaeta e Gabriel se tornaram praticamente intocáveis, enquanto outros como Thiago Maia, Andreas e Marinho não foram tão frequentes.
O elenco questiona a forma objetiva como Paulo Sousa se posiciona nas cobranças, seja no dia a dia, na beira do campo nos jogos ou nas entrevistas coletivas. Jogadores se sentem expostos e muitas vezes tratados como se não tivessem capacidade de compreensão e execução dos planos do técnico. Não foram poucos os bate-bocas durante treinos por conta da forma incisiva com que Sousa cobrou determinada ação.
Viraram hábito as rebatidas dos atletas quando não concordam ou não gostam da forma como o treinador passa suas orientações. Mesmo David Luiz, um dos que mais têm proximidade com o português, contestou com veemência uma crítica no intervalo da partida contra o Bangu.
O Flamengo já vencia por 3 a 0 quando Paulo Sousa foi firme ao reclamar do movimento da linha defensiva numa jogada em que o adversário criou perigo. David argumentou que não tinha como fazer o movimento, o treinador disse que deviam seguir o plano, o zagueiro usou o vídeo para defender sua tese, e Paulo seguiu para outra jogada para evitar prolongar o debate.
Há queixas à condução de grupo do treinador, que critica com veemência, mas não o faz na mesma intensidade quando tem chance de elogiar. Os atletas não se adaptaram ao formato de montagem da equipe, com treinos conceituais e sem formação titular nos dias anteriores aos jogos. Paulo entende que é uma forma de estimular a competitividade, mas os atletas recebem como falta de confiança.
No intervalo do empate com o Fluminense que custou o tetra estadual, jogadores e treinador tiveram debate acalorado. Paulo Sousa cobrou execução do plano tático, enquanto do outro lado houve resposta de que não seria possível diante das alternâncias do confronto.
O português costuma citar processos aquisitivos, e também no campo disciplinar há dificuldade de implementação. As multas por descumprimento da cartilha se tornaram comuns e não provocam mais tanto impacto. Mas causam também cobranças.
Em determinada situação, Paulo Sousa multou Bruno Henrique por atraso no deslocamento da academia para o campo. O atacante não gostou e deu sua versão para o episódio alegando que os relógios do Ninho estão atrasados e com horários diferentes. Diante do argumento, o treinador ficou sem resposta.
Caso Diego Alves
É preciso ir ao dicionário em busca sinônimos de conflito para relatar o que acontece com Diego Alves neste início de 2022 e foi negado por Paulo Sousa em entrevista coletiva: divergência, discordância, desacordo. Definições para o processo que tornou o goleiro terceira opção após a chegada de Santos.
Diante da demanda por reformulação existente antes do primeiro treino de Paulo Sousa, foi Diego Alves o primeiro sacado do time titular após ficar fora de atividades no início de fevereiro. No dia 2 daquele mês, o Flamengo informou em comunicado que o goleiro ficou fora do duelo com o Boavista por dores no joelho.
Na véspera do Fla-Flu, dias depois, Diego Alves voltou a treinar normalmente e disse que tinha condições de fazer sua primeira partida no ano. Os Paulos Sousa e Grilo disseram que com eles quem não treina durante a semana não vai para os jogos. Foi quando Diego externou a insatisfação e pediu o mesmo tratamento e as mesmas oportunidades de Hugo.
Na semana seguinte, os três se reuniram a portas fechadas com Márcio Tannure para acareação da programação cumprida na semana anterior. Questionado, o médico disse que Diego Alves queixou-se de dores no joelho como já havia acontecido em 2021 e fez tratamento paliativo, mas que não existia lesão que o impossibilitasse de jogar.
Para o goleiro, a resposta de Tannure indicava que tudo seguia dentro do que sempre foi hábito no clube. Já os portugueses responderam que Diego Alves teria tratamento e oportunidade iguais a Hugo a partir do momento em que estivesse em campo treinando normalmente.
Foi o suficiente para que o relacionamento entre as partes se tornasse protocolar. Diego e o preparador de goleiros Paulo Grilo praticamente apenas se cumprimentam e falam o necessário nos treinos, e o goleiro teve que esperar mais três rodadas até atuar contra o Madureira, dia 16 de fevereiro. Além desse jogo, entrou em campo somente no empate com o Resende, quando foi mal.
Em paralelo, a relação de Diego é fria e profissional com Hugo, por quem os Paulos Sousa e Grilo são encantados. A escolha pela contratação de Santos passa muito pelo planejamento para que o atual titular não seja relegado ao posto definitivo de reserva e alterne com um goleiro que tem o comportamento visto como mais discreto e menos de confronto.
Diego Alves, por sua vez, segue treinando normalmente e há duas semanas pediu autorização a Paulo Grilo para que fizesse atividades complementares fora de horário no CT. Na última terça, o goleiro desabafou no Ninho após vazamento dos conflitos com os portugueses e disse estar calado, sem discussões ou cobranças mais reativas, como em outros momentos.
Profissionais do dia a dia do CT se dividem ao comentar o episódio. Boa parte, no entanto, entende que o processo foi conduzido de maneira abrupta, sem um diálogo que levasse em conta a história de Diego Alves no clube e externasse a preferência por Hugo antes da reunião com a presença de Tannure já com um mês de trabalho.
Ciente de que está fora dos planos da comissão técnica, Diego Alves não cogita deixar o Flamengo antes do meio do ano, quando a janela internacional reabrirá. Em reta final de carreira, o goleiro já desabafou para amigos que não deixará o clube pela porta dos fundos, mesmo se for necessário esperar até dezembro.
Braçadeira da discórdia
O processo de reformulação imposto por Paulo Sousa passa também pela busca de novas lideranças e, consequentemente, uma quebra da hierarquia que ditou a utilização da braçadeira de capitão nos últimos anos. O treinador deseja um movimento até que Gabriel ocupe o posto definitivamente, e este processo gerou ruídos que ficaram expostos até dentro de campo.
A escolha por Filipe Luís na final contra o Fluminense foi uma forma de tentar pacificar o ambiente com um nome de consenso em todos os subgrupos que passaram a existir. A solução paliativa, por sua vez, está longe de resolver o problema para o restante da temporada.
Até o fim do ano passado, a dinâmica era clara: Diego ficava com a faixa sempre que estivesse em campo, mesmo entrando no decorrer da partida. Éverton Ribeiro vinha na sequência, com Diego Alves e depois Willian Arão. Desde o início do ano, Paulo Sousa posicionou Gabriel em terceiro neste ranking, em decisão que gerou desagrado e também situações impensáveis dentro de campo.
Houve questionamentos se a postura de Gabriel fora de campo seria condizente ao posto de capitão, mas o treinador entende que, além da necessidade de o processo de reformulação passar também pela liderança, o atacante dá exemplo pela forma como trabalha no dia a dia. A disputa de pênaltis contra o Atlético-MG, pela Supercopa, por sua vez, intensificou a insatisfação.
Para os líderes, Gabriel deveria ter cobrado o 12º pênalti por ser o batedor oficial da equipe. Da beira do campo, Filipe Luís e Diego Alves gritaram e sinalizaram para que o camisa 9 assumisse a responsabilidade. Naquele momento, Vitinho chegou a hesitar, mas seguiu a caminhada até a cobrança desperdiçada.
Gabriel se manifestou em redes sociais dando a entender que deixaria para bater o pênalti decisivo, após um erro do Atlético-MG. Os companheiros, por sua vez, viram a decisão como individualista.
Uma semana depois, os conflitos sobre quem herda a faixa de capitão durante o jogo foram escancarados. Ao ser avisado que seria substituído durante a parada técnica da partida contra o Resende, Éverton Ribeiro passou a braçadeira para Arão, que foi em direção a Diego Alves. Paulo Sousa gritou que não era para dar a faixa ao goleiro, e o volante a colocou no braço.
A situação se repetiu nas semifinais contra o Vasco. Substituído, Éverton Ribeiro passou a faixa pra Willian Arão – o mesmo ocorreu na primeira final.
No jogo da volta da semifinal, Gabriel começou como capitão mesmo com o volante em campo e foi substituído justamente por Éverton Ribeiro. O atacante, no entanto, optou por ir até Filipe Luís e entregar a faixa a ele, não ao camisa 7.
Divergências que não ficam escondidas nem diante de um Maracanã lotado.
Falta o abraço coletivo
A falta de sintonia com o trabalho de Paulo Sousa atinge também o grupo entre si. O discurso de David Luiz no vestiário da Arena Pantanal após a derrota nos pênaltis para o Atlético-MG, pela Supercopa, ajuda a diagnosticar os problemas de um Flamengo que já tem três vice-campeonato no currículo em 2022.
– Enquanto o nosso abraço aqui dentro não for de verdade, nós não vamos ganhar nada.
A frase foi o momento mais forte de um posicionamento de mais de 20 minutos na roda de oração. David chegou a falar que o Flamengo não deve nada ao Galo ou ao Palmeiras, mas que o coletivo dos dois adversários é nitidamente mais forte. Após a derrota para o Santos, pelo Brasileirão de 2021, o jogador já havia pedido a palavra para duras colocações e cobranças de profissionalismo de um elenco que passou a apresentar subgrupos em 2022.
Se falar em brigas ou desavenças pode soar pesado demais, a verdade é que o grupo está afastado como nunca se viu desde a temporada mágica de 2019. Quem circula pelos bastidores do Ninho do Urubu ou pelos jantares no Maracanã é capaz de enumerar quem é quem.
Por mais que a diferença de perfil e personalidade sempre fosse flagrante, a sintonia no ambiente de trabalho sempre esteve presente. Isso não existe mais.
Pode-se falar do grupo dos líderes e mais experientes com Diego Alves, Diego Ribas, Filipe Luís, Willian Arão, Éverton Ribeiro, Renê, Rodrigo Caio e outros. O grupo dos que chegaram depois tem David Luiz, Andreas Pereira, Marinho, Thiago Maia e Rodinei, entre outros. Gabriel chama para si jovens como Matheuzinho e Lázaro, que também circulam em outros grupos. E há os que flutuam entre todos, como Arrascaeta, Bruno Henrique, Pedro e Vitinho.
A reunião da última sexta, quando todos se juntaram para cobranças e promessa de dedicação na final do Carioca, mostra que não há ruptura. Por outro lado, não há sintonia e algumas relações são estritamente profissionais.
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