Em seu vídeo escabroso que repaginava o discurso e a estética nazista para anunciar uma ação do Ministério da Cultura do governo Bolsonaro na semana passada, Roberto Alvim indicava em seu primeiro minuto que “a profunda ligação com Deus” (que aparentemente o povo brasileiro possui) seria um dos pilares para a criação de políticas públicas. Com isso, “as virtudes da fé, da lealdade, do auto-sacrifício e da luta contra o mal” seriam “alçadas ao território sagrado das obras de Arte”. Mais religioso que esse discurso só a bênção em inglês dada ao ex-secretário da Cultura pelo apóstolo estadunidense Kevin Leal na igreja Bola de Neve Church, em São Paulo, há mais ou menos um mês, que o lembrava de que “você trabalha para um presidente, mas serve a um Rei” (e resta a dúvida: a serviço de qual dos dois o vídeo foi produzido e publicado?).
Esta é mais uma manifestação pública da relação medonha, mas tradicional, entre fascismo e cristianismo. Recentemente, em especial frente aos movimentos das eleições brasileiras em 2018 e o apoio de lideranças religiosas ao golpe de Estado boliviano, foi resgatado o termo “cristofascismo”, cunhado em 1970 pela teóloga alemã Dorothee Sölle, pensando a realidade centro-europeia e muito influenciada pelo pensamento de libertação que se desenvolvia na América Latina. Contudo, apesar de permitir a denúncia à relação entre a igreja cristã e partidos/governos/movimentos fascistas, o conceito pode deixar passar algo bastante óbvio, mas fundamental de se destacar: historicamente, não houve fascismo que não fosse cristão.
Na capa impactante do filme Amém (2002), de Costa-Gravas, baseado em uma peça de 1963 de Rolf Hochhut, vemos destacada em vermelho uma cruz que em suas pontas se transforma em uma suástica. A imagem forte que nos leva a imaginar um enredo ofensivo ou mesmo violento, na verdade abre as portas para uma narrativa de suspense cujo final está historicamente dado, mas sem cenas violentas ou mesmo uma situação drástica de ataque ao cristianismo. O ponto central desse enredo grave é o silêncio e a conivência da Igreja Católica frente às denúncias dos campos de concentração nazistas – assim como o sumiço das vozes luteranas dentro da Alemanha contra o regime. Se podemos falar de Bonhoeffer ou Karl Barth como figuras que se opuseram ao partido nazista, os contamos nos dedos com outros pequenos grupos. As igrejas em sua maioria ou se calaram ou se engajaram com o movimento. Por um lado ou por outro, foram parceiras agraciadas com os privilégios e as regalias que Hitler junto de sua equipe concediam para a cultura religiosa e para a sã doutrina dos fiéis.
Como mostra Mariátegui em seus artigos sobre o fascismo italiano, reunidos e publicados em português sob o título As origens do fascismo pela Editora Alameda, Mussolini cedeu à Igreja Católica italiana (leia-se, também, com o Vaticano) o monopólio sobre a educação, tendo em troca seu apoio oficialmente. O ministro da cultura e educação da Itália, Giovanni Gentile, foi o responsável pela reformulação escolar e pelas novas orientações e programas de arte no país, com o intuito de “elevar a nação” e resgatar o “espírito italiano”. Católico, conservador e filósofo de formação, Gentile trazia em artigos, discursos e justificativas para suas reformas interpretações de textos bíblicos que justificavam e legitimavam o uso de armas, a guerra e o sacrifício pela Pátria. Qualquer semelhança, como sabemos, deve ser mera coincidência.
As celebrações religiosas na Itália e as datas comemorativas luteranas durante a década de 1930 tinham presença garantida de fascistas e nazistas em palanques e mais palanques, com propaganda massiva e exaltação nacionalista da religião popular “verdadeira”. Aos domingos, as missas e os cultos estariam cheios, a homilia e os hinos triunfantes seriam executados, as camisas pretas e as suásticas empunhariam a cruz ao lado da espada. O regime seria defendido. Quando não, a respeito de seus crimes o silêncio era orientação para o clero. Seja condescendente ou então será um traidor: não apenas do regime, da Pátria ou do partido, mas também da fé, que aparentemente era um dos pilares que orientavam aquelas lideranças falhas – mas pressupostamente utilizadas de alguma maneira para purificar a nação, em algum projeto ou desígnio de Deus. Afinal, as pessoas “trabalhavam para um presidente, mas serviam a um Rei”.
Nem precisamos falar sobre a relação entre conservadores católicos e os regimes ditatoriais na América Latina entre os anos de 1960 e 1980. De Terra, Família e Propriedade aos bispos de Pinochet, o fascismo era legitimado pela religião cristã. É curioso como o primeiro progom, em 1938, a chamada “Noite dos Cristais” em que foram assassinados milhares de judeus na Alemanha, foi justificado como ato piedoso em memória de Lutero. Isto posto, mesmo sendo cristão evangélico pentecostal como sou, não posso dar de ombros para o fato de que não há fascismo nesse ocidente de meu Deus que não tenha nas instituições religiosas e em seu conservadorismo o atalho para se disseminar no tecido social.
Hitler, sendo católico, em 1933 tinha como um de seus cartazes de campanha eleitoral uma foto de Lutero ao lado de uma suástica, com o slogan “A luta de Hitler e o ensinamento de Lutero são a melhor defesa para o povo alemão”. Mussolini não tinha religião, colocando-se primeiramente como agnóstico, mas assume a religiosidade católica como oficial do fascio com suas brigadas, buscando na tradição romana seus símbolos nacionais. Bem, temos atualmente um presidente que se diz católico, batizou-se evangélico no Rio Jordão pelas mãos do Pastor Everaldo e ainda busca apoio da comunidade judaica em suas convenções. “Deus acima de todos” vem bem a calhar para legitimar as ações catastróficas de ministros despreparados e uma agenda político-econômica assassina.
Nesse ínterim, assim como Alvim fez para receber a graça na Bola de Neve Church há um mês, domingo passado Bolsonaro foi à Igreja Memorial Batista, em Brasília, para cultuar e ser abençoado. Na oração especial, o pastor pediu para que o presidente “saiba o momento do silêncio”, a “hora de calar”. Resta saber para qual senhor este clamor dominical por sabedoria foi dirigido: para o Cristo ou para o fascio? No caso, os seguidores do primeiro não necessariamente aceitam o segundo. Mas os que compõe o segundo grupo, sempre vestiram a “roupa de ir à igreja”. E nas muitas vezes, ocuparam cargos eclesiásticos.
*Artigo publicado originalmente no site Jornal GGN, em 21/01/2020
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