Moscas, fumaça, poeira, mau cheiro e inúmeros objetos que podem causar ferimentos no corpo fazem parte da rotina de algumas famílias do interior de Alagoas. Elas arriscam a própria saúde num trabalho que exige muita disciplina, coragem e necessidade: a coleta seletiva de materiais para reciclagem nos lixões a céu aberto.
Nesses locais, mesmo quando conseguem se desviar dos perigos visíveis, todas elas estão expostas aos males invisíveis, aqueles que podem ser provocados por bactérias e outros seres microscópicos presentes nos materiais que são trazidos pelos caminhões. A situação fica ainda mais grave quando os catadores não utilizam nenhum tipo de equipamento de proteção individual (EPI).
Acompanhado pela família, José Ferreira Filho vai diariamente ao lixão na zona rural de São José da Tapera, no Sertão de Alagoas, coletar a própria sobrevivência. Tímido, ele contou à reportagem do Correio Notícia que tem três filhos e que mora próximo ao lixão, sua única fonte de renda.
O material coletado, numa disputa com outros catadores, as moscas e os cães de estimação da família, que se esbaldam nos restos de alimento, é separado e guardado dentro de sacos no próprio lixão. Segundo ele, tudo é vendido para um comprador de Arapiraca, cidade situada na região Agreste, que vai até o local uma vez por mês.
Seu José contou que o quilo do plástico é vendido por quarenta centavos, enquanto o quilo do metal – em geral alumínio ou ferro – chega a ser vendido por três reais. Quando perguntado se a renda obtida no trabalho no lixão dá para manter a família composta por cinco pessoas, ele foi taxativo: “dá, sem emprego o cara tem que se virar”.
Mesmo trabalhando por conta própria num local insalubre e onde as doenças estão no solo e no ar, carregadas pelas moscas que não dão sossego, seu José não utiliza nenhum tipo de equipamento de proteção individual (EPI).
Seu “uniforme” de trabalho é composto por um boné, uma camisa de manga curta, uma bermuda e um par de botas, do tipo que é usado por trabalhadores de fazendas que lidam com o gado. Essa, inclusive, era a atividade que ele fazia até um ano atrás, antes de retirar o sustento da família do lixão.
De cara e mãos limpas, ou seja, sem nenhuma máscara ou luva, ele vai abrindo as sacolas trazidas pelas caçambas da prefeitura à procura de plásticos e metais. Quando encontra, enche o saco que carrega consigo. Seu José afirmou que nunca pegou nenhuma doença devido ao trabalho no lixão, mas já sofreu ferimentos com objetos cortantes. “Se cortar, se corta aqui e acolá, mas nunca peguei nenhuma doença, não”, destacou.
Por outro lado, ele reconheceu que, se tivesse condições, usaria alguma luva ou máscara e as repassaria à esposa, que o acompanha na tarefa. Sobre o filho pequeno, exposto aos mesmos perigos que o pai e a mãe, com aparência de 9 ou 10 anos de idade e cuja mão-de-obra estava sendo usada para coletar materiais reciclados, seu José disse que “é difícil eu trazer ele aqui” e frisou que o garoto, assim como seus outros dois filhos mais velhos, estuda.
Quem também vive da coleta de materiais recicláveis no lixão de São José da Tapera é seu Edinei, que há menos de um ano tem no local sua única fonte de renda. Ele e a mulher vão até lá de segunda a sábado, dias em que as caçambas da prefeitura trazem toneladas de lixo recolhido na cidade e nos povoados.
Assim como seu José e a esposa, seu Edinei também não usa nenhum equipamento de proteção individual (EPI) e está exposto aos mesmos perigos, como cortes e doenças. Porém, segundo ele, nunca contraiu nenhuma doença devido ao trabalho de alto risco no lixão.
Na falta de EPI, seu Edinei usa boné, uma luva em uma das mãos, um facão, tênis, bermuda e camisa sem mangas (Foto: Diego Barros) |
Durante a coleta dos materiais, ele usava um par de tênis, uma bermuda até a altura do joelho, uma camisa sem mangas, um boné, uma luva plástica em uma das mãos e, nessa mesma mão, um facão, usado para cortar objetos e rasgar sacolas. Ele também é fornecedor de materiais recicláveis de plástico e metal para o mesmo caminhão de Arapiraca que passa por lá uma vez a cada trinta dias.
Tanto seu Edinei quanto seu José concordam que, se houvesse um programa de coleta seletiva na cidade, por meio do qual os moradores fossem orientados a separar o lixo, o trabalho deles seria facilitado e os dois correriam menos riscos. Porém, essa ainda é uma realidade distante para os dois trabalhadores.
Existe a expectativa para o fechamento do lixão de São José da Tapera, após a entrada em operação de um aterro sanitário construído por meio de um consórcio intermunicipal, em Olho D’água das Flores. Sobre isso, seu Edinei argumentou que “logo, logo eu vou sair daqui, vou arrumar outra coisa”. O catador seu José também está disposto a mudar de profissão. “O jeito é o cara arrumar emprego em outra coisa”, disse.
Moscas, fumaça, agentes químicos e biológicos podem causar doenças
Os lixões podem oferecer riscos à saúde humana através de três formas principais, segundo avaliação do médico Lucas Fonseca, que é mestre pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Segundo ele, os riscos são decorrentes de agentes físicos, como fumaça, odores, objetos perfuro-cortantes e ruídos intensos, agentes químicos, como solventes orgânicos, metais pesados, medicamentos, e agentes biológicos, como vírus, bactérias e fungos.
“A fumaça proveniente da queima dos resíduos do lixo contém partículas sólidas e substâncias tóxicas que, uma vez inaladas, podem ocasionar diferentes doenças do trato respiratório superior ou inferior, como processos irritativos, podendo ainda aumentar o risco de desenvolvimento de outros problemas de saúde em pessoas com alguma doença prévia das vias respiratórias, como crises de asma em indivíduos com histórico desta doença ou mesmo maior predisposição para infecções respiratórias”, pontuou Lucas Fonseca.
Segundo ele, além da fumaça, a contaminação por terra também reserva seus perigos. “O acúmulo de lixo é grande atrativo para animais diretamente relacionados à transmissão de doenças, como moscas e baratas, capazes de promover a disseminação de infecções intestinais através da contaminação de alimentos, bem como roedores”, alertou o médico, que destacou ainda que a falta do EPI adequado agrava ainda mais o risco potencial à saúde.
“Se houver materiais perfurantes ou cortantes, acidentes podem acontecer, com complicações desde infecções menos graves, como infecções locais que podem requerer uso de medicamentos específicos, como analgésicos ou mesmo antibióticos, até infecções potencialmente fatais, como o tétano”, explicou Lucas Fonseca. Outras doenças infecciosas capazes de se tornar crônicas, segundo ele, podem ainda ser contraídas durante acidentes com materiais perfuro-cortantes, com diferentes graus de prejuízo à saúde, como as hepatites virais B e C e o vírus HIV.
De acordo com o engenheiro de Segurança do Trabalho José Morais da Silva Júnior, que trabalha numa empresa pública em Maceió, para evitar acidentes e o contágio de doenças, os catadores de material reciclado que trabalham nos lixões, bem como os garis, deveriam utilizar um EPI composto pelos seguintes itens: óculos de segurança ou protetor facial de acrílico; luvas de vaqueta (um tipo de couro); calçado de segurança (botinas de couro); calça e bata de manga longa de tecido brim, que é 100% de algodão, com fita refletiva na frente e atrás; boné com aba árabe, do tipo que cobre a parte de trás do pescoço e protege dos raios solares; e um respirador semi-facial com filtro combinado (mecânico e químico), para se proteger de vapores orgânicos, ou seja, da fumaça constante que toma conta dos lixões devido à combustão espontânea dos materiais.
“É importante destacar também que esses equipamentos, principalmente luvas, óculos, protetor facial e botinas, precisam ter o Certificado de Aprovação do Ministério do Trabalho e Emprego, mais conhecido como CA. O trabalhador também não pode descuidar da hidratação, por isso, deve beber muita água”, orientou o engenheiro.
Segundo ele, todos esses equipamentos de proteção individual custam no mercado cerca de R$ 300, um investimento que, como ele mesmo reconheceu, nem sempre está ao alcance de trabalhadores que enfrentam os riscos de um lixão para obter renda.
Dos 102 municípios, apenas Maceió usa aterro sanitário
Em 2010, foi aprovada a lei federal 12.305, que criou a Política Nacional de Resíduos Sólidos e que tinha como um de seus principais objetivos o fim dos lixões até o ano de 2014. Ficou estabelecido que a melhor opção para substituir os lixões seriam os aterros sanitários, para onde o lixo deveria ser enviado, após dele serem retirados os materiais que ainda pudessem ser reciclados, como plásticos e metais, e que levam mais tempo para se decompor na natureza.
O tempo passou e, por uma série de razões, entre elas a falta de recursos, apenas um entre todos os 102 municípios de Alagoas instalou o aterro sanitário. Maceió, capital do estado, utiliza o aterro desde o ano de 2010, o mesmo da promulgação da lei.
De acordo com a gerente de Resíduos Sólidos Elaine Melo, da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Semarh), 90 municípios estão unidos em consórcios intermunicipais, cujo principal objetivo é a instalação de aterros sanitários regionais.
Entre eles, o que está com a situação mais adiantada é o Consórcio Intermunicipal para Gestão de Resíduos Sólidos (Cigres) da Bacia Leiteira, que inclui 16 municípios e uma população estimada em 250 mil habitantes. Juntos, esses municípios produzem cerca de 70,64 toneladas de resíduos sólidos por dia.
O aterro já foi construído, com recursos federais por meio de emenda parlamentar, na cidade de Olho D’água das Flores. Porém, ainda não entrou em operação, segundo Elaine Melo, devido à falta da licença ambiental de operação, que já foi solicitada ao Instituto do Meio Ambiente de Alagoas (IMA/AL). Quando estiver em funcionamento, o aterro dará fim ao lixão de São José da Tapera, que será desativado e onde trabalham seu José e seu Edinei, além de outros catadores.
Segundo pesquisa da Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), em 2014 Alagoas tinha uma produção de 2.490 toneladas de resíduos sólidos por dia, o que dava uma média de 0,750 quilo por habitante. De acordo com a mesma pesquisa, apenas 4,1% do lixo gerado no estado vão para aterro sanitário, enquanto 95,9% vão para aterro controlado ou lixões a céu aberto.
Devido a irregularidades nos lixões, o Instituto do Meio Ambiente de Alagoas (IMA/AL) informou, por meio de sua assessoria de comunicação, que autuou e, em alguns casos, multou cerca de 30 prefeituras em 2015. Os principais problemas encontrados foram disposição inadequada de resíduos sólidos domésticos misturados a resíduos de serviços de saúde, ou seja, lixo hospitalar, resíduos da construção civil, recipientes e embalagens contaminados por hidrocarboneto de petróleo, pneus, eletrônicos, carcaças de animais, entre outros.
Também conforme o IMA/AL, são identificados, frequentemente, queima dos resíduos, presença de catadores, residências, livre acesso de animais e crianças ao lixão. Todas essas situações são inadequadas e podem provocar a contaminação do solo, dos recursos hídricos, emissão de gases poluentes, riscos à saúde humana e a dos animais, proliferação de vetores (ratos, baratas, moscas, escorpiões), instabilidade do solo, entre outros prejuízos.
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