Manter as cidades limpas é uma das principais ações que o poder público deve garantir, com apoio da própria população, para evitar uma série de doenças. Diante do aumento populacional, do crescimento das cidades e do consumo, é cada vez maior a quantidade de lixo produzido no meio urbano, o que torna esse desafio ainda maior.
Segundo uma pesquisa da Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), em 2014, Alagoas tinha uma produção de 2.490 toneladas de resíduos sólidos por dia, o que dava uma média de 0,750 quilo por habitante.
Dessa forma, dá para saber que no município de Monteirópolis, por exemplo, que possui, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 7.251 habitantes, são gerados 5.438 quilos de lixo por dia. Já em São José da Tapera, também no Sertão, são produzidos cerca de 24.341 quilos de resíduos sólidos diariamente.
Para recolher todo esse material e manter as cidades limpas, as prefeituras contam, além da educação das próprias pessoas, com a força de trabalho dos garis, que antes do sol nascer já estão nas ruas varrendo, recolhendo o lixo, capinando o mato e juntando o entulho que será levado pelos caminhões.
Por isso, o trabalho dos garis é fundamental para garantir a saúde da população. Mas, por outro lado, quem garante a saúde do próprio gari enquanto ele está trabalhando? Como ele pode minimizar os riscos de contrair doenças resultantes do contato com o lixo?
A melhor atitude é o uso dos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), que garantem a saúde e a segurança do trabalhador. Porém, não é o que acontece em várias cidades do Sertão de Alagoas, onde os profissionais da limpeza urbana estão contando apenas com a sorte e utilizando no dia a dia roupas comuns tiradas do próprio guarda-roupa, sem nenhuma orientação ou assistência do poder público.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), 2,02 milhões de pessoas morrem a cada ano devido a enfermidades relacionadas com o trabalho. Outras 160 milhões de pessoas no mundo sofrem de doenças não letais relacionadas com o trabalho. Entre elas, estão os garis do Sertão alagoano.
Falta de EPI, inalação de poeira e dores nas articulações fazem parte da rotina dos garis
O gari Cosmo Santos Ferreira, 43, exerce há 14 anos a função no município de São José da Tapera, após aprovação em concurso público. Ele contou que não possui nenhum EPI fornecido pela prefeitura e que usa a própria roupa para trabalhar.
“Uso chinelo de dedo, bermuda, camisa de manga curta e às vezes um boné”, relatou. Segundo ele, durante o trabalho, o que mais incomoda é a inalação de poeira, já que sua função consiste em varrer as ruas e recolher o lixo com um carrinho de mão. O serviço começa às 5h e termina por volta das 9h.
Pode até acabar antes, conforme ele explicou, desde que a limpeza do “lote” seja concluída, ou seja, desde que o grupo de garis conclua a limpeza do conjunto de ruas para aquele dia.
Além da inalação de poeira, devido à falta de máscaras, Cosmo disse que sente dores nas articulações, a chamada Lesão por Esforço Repetitivo (LER). Porém, ainda não é algo que o impede de realizar o trabalho. Para aliviar as dores, ele disse que “troca o lado”, ou seja, usa a vassoura posicionada no outro braço.
“Noventa e cinco por cento dos garis que trabalham na mesma função que a minha não possuem EPIs. Eles vão trabalhar usando o mesmo tipo de roupa que eu uso”, ressaltou. Além da falta de equipamentos e de uniformes adequados, Cosmo também não usa protetor solar. “Protetor é coisa de luxo, ninguém nem fala”, lamentou.
Porém, cerca de 5 anos atrás, os garis de São José da Tapera receberam da prefeitura os EPIs. De lá para cá, segundo o próprio Cosmo, tudo foi gasto devido ao uso diário e não houve renovação. “Por meio do Sindicato dos Servidores Públicos Municipais, nós entregamos na Secretaria nesse mês de março um oficio com o pedido de equipamentos de proteção e uniformes”, frisou.
Por outro lado, segundo ele, até agora não obtiveram nenhuma resposta da Secretaria de Transporte, Obras, Viação e Urbanismo, à qual os garis estão vinculados.
Procurado pela reportagem do Correio Notícia, o secretário da pasta, Edieckson Santos Pereira, informou que já existe uma licitação em andamento para a compra de uniformes e de EPIs para todos os garis do município de São José da Tapera. “A gestão é nova, tem apenas três meses que assumiu, mas já estamos com tudo em andamento para comprar esse material. Tudo agora depende apenas dos trâmites burocráticos”, explicou o secretário.
Segundo ele, quando a nova gestão assumiu a Prefeitura, em janeiro, 80% dos garis também não tinham ferramentas de trabalho, o que já foi providenciado. “Os EPIs serão distribuídos a todos os garis, e os uniformes que eles vão receber possuem proteção contra os raios solares que fazem mal à saúde”, acrescentou Edieckson Santos, ressaltando que o município tem entre 70 e 80 garis.
Os equipamentos de proteção, conforme ele destacou, incluem botas, luvas, óculos, máscaras, bonés e os uniformes. Não há, ainda, segundo o secretário, uma data para distribuição desses materiais, devido à licitação que está em andamento. “Mas todos irão receber”, concluiu o gestor, informando que a prioridade desse início de gestão foi garantir a continuidade dos serviços de saúde, o funcionamento do hospital da cidade, a compra de merenda para as escolas e os serviços de assistência social.
Ainda segundo o gari Cosmo Santos, a categoria recebe o adicional de insalubridade. O poder público poderia, segundo ele, pagar até 40% como adicional de insalubridade, mas em São José da Tapera é pago apenas o valor mínimo, que é de 10%.
Nesse mesmo município, segundo ele, quando não conseguem mais desenvolver seu trabalho devido a problemas de saúde, os garis são realocados em outros cargos no serviço público, mas não existe reabilitação. Isso significa que, na prática, os profissionais precisam se tratar sozinhos e podem nunca mais voltar para suas funções de origem.
Vereador convocado para reassumir cargo de gari denunciou falta de EPI
A situação da falta de EPI foi denunciada, em janeiro deste ano, pelo vereador de Monteirópolis Diógenes Allan Farias Medeiros, conhecido como Allan da Arara (PMDB), após ter sido convocado pelo atual prefeito do município para reassumir seu cargo de gari.
Logo no primeiro dia de trabalho, o parlamentar denunciou que pediu, mas não recebeu nenhum EPI, apenas uma ferramenta de trabalho: uma enxada nova. Por isso, ele foi trabalhar usando apenas camisa de mangas curtas, bermuda, chinelos e um boné personalizado com o próprio nome.
Já o secretário municipal de Administração, Danilo Izidoro Silva, afirmou à reportagem que o vereador recebeu, sim, o kit de EPI composto por botas, luvas e óculos.
“Todos os garis que trabalham no recolhimento de lixo possuem EPIs. Se houver algum que ainda não tem, nos procure que vamos dar toda assistência. Já o vereador está fazendo um trabalho de capinar mato, ele não faz coleta de lixo, mas mesmo assim recebeu o EPI”, explicou, na época, o secretário.
Ainda segundo o vereador Allan da Arara, os demais garis do município também não possuíam, em janeiro, nenhum EPI, apesar das cobranças feitas pelos vereadores, inclusive por ele próprio, ainda na gestão passada, de quem ele era aliado. “A Câmara já tinha aprovado um projeto para que a Prefeitura repassasse EPIs e até protetor solar aos garis”, colocou o vereador.
Neste sábado (8), o vereador informou ao Correio Notícia que recebeu da Prefeitura, em janeiro, um par de botas e outro de luvas. “É um trabalho digno, eu vou continuar exercendo, sim”, acrescentou o parlamentar, que em seu primeiro dia, em janeiro, trabalhou das 7h às 12h capinando mato.
O vereador, que foi reeleito em outubro do ano passado, agora faz parte da mesa diretora da Câmara e ocupa a função de segundo secretário. Como as sessões ocorrem apenas uma vez por semana, nas tardes de sexta-feira, ele tem tempo disponível suficiente para desempenhar suas funções como gari.
Vereador por Monteirópolis, Allan da Arara (à direita) foi ao seu primeiro dia de trabalho como gari sem nenhum EPI (Foto: Reprodução/Whatsapp) |
Médico explica riscos à saúde dos garis
O contato diário com o lixo urbano pode oferecer riscos à saúde humana através de três formas principais, conforme avaliação do médico Lucas Fonseca, que é mestre pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Segundo ele, os riscos são decorrentes de agentes físicos, como fumaça, odores, objetos perfuro-cortantes e ruídos intensos; agentes químicos, como solventes orgânicos, metais pesados, medicamentos; e agentes biológicos, como vírus, bactérias e fungos.
No caso dos garis que vão até os lixões a céu aberto auxiliar no depósito do lixo que é retirado das caçambas, os riscos são ainda maiores. “A fumaça proveniente da queima dos resíduos do lixo contém partículas sólidas e substâncias tóxicas que, uma vez inaladas, podem ocasionar diferentes doenças do trato respiratório superior ou inferior, como processos irritativos, podendo ainda aumentar o risco de desenvolvimento de outros problemas de saúde em pessoas com alguma doença prévia das vias respiratórias, como crises de asma em indivíduos com histórico desta doença ou mesmo maior predisposição para infecções respiratórias”, pontuou Lucas Fonseca.
Segundo ele, além da fumaça, a contaminação por terra também reserva seus perigos. “O acúmulo de lixo é grande atrativo para animais diretamente relacionados à transmissão de doenças, como moscas e baratas, capazes de promover a disseminação de infecções intestinais através da contaminação de alimentos, bem como roedores”, alertou o médico.
Outras doenças infecciosas capazes de se tornar crônicas, segundo ele, podem ser contraídas durante acidentes com materiais perfuro-cortantes por quem faz a limpeza das cidades, com diferentes graus de prejuízo à saúde, como as hepatites virais B e C e o vírus HIV.
Uso de EPIs pode evitar doenças e acidentes de trabalho
De acordo com o engenheiro de Segurança do Trabalho José Morais da Silva Júnior, que trabalha numa empresa pública em Maceió, para evitar acidentes e o contágio de doenças, os garis deveriam utilizar um EPI composto pelos seguintes itens: óculos de segurança ou protetor facial de acrílico; luvas de vaqueta (um tipo de couro); calçado de segurança (botinas de couro); calça e bata de manga longa de tecido brim, que é 100% de algodão, com fita refletiva na frente e atrás; boné com aba árabe, do tipo que cobre a parte de trás do pescoço e protege dos raios solares; e um respirador semi-facial com filtro combinado (mecânico e químico), para se proteger de vapores orgânicos, ou seja, da fumaça constante que toma conta dos lixões devido à combustão espontânea dos materiais.
“É importante destacar também que esses equipamentos, principalmente luvas, óculos, protetor facial e botinas, precisam ter o Certificado de Aprovação do Ministério do Trabalho e Emprego, mais conhecido como CA. O trabalhador também não pode descuidar da hidratação, por isso, deve beber muita água”, orientou o engenheiro.
Segundo ele, todos esses equipamentos de proteção individual custam no mercado cerca de R$ 300, um investimento que nem todas as prefeituras do Sertão estão fazendo para proteger seus trabalhadores.
O trabalho do gari, profissional que muitas vezes é “invisível” ao restante da população, será cada vez mais necessário. Isso porque, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), a quantidade de resíduo sólido urbano gerado no Brasil, em 2014, foi de 215.297 toneladas por dia, um aumento de cerca de 2,9% em relação a 2013.
No mesmo período, a população brasileira teve um crescimento inferior a 1%. Ou seja, a produção de lixo cresce numa velocidade quase 3 vezes maior que a população. Os cuidados com a saúde e a segurança dos garis, por outro lado, não crescem na mesma proporção, o que pode aumentar a incidência de doenças oriundas do exercício da profissão, bem como de acidentes de trabalho.
Confira abaixo algumas fotos de garis trabalhando em São José da Tapera, na primeira semana de abril deste ano, sem nenhum Equipamento de Proteção Individual (EPI).
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