Em setembro de 2021, Jair Bolsonaro concedeu uma entrevista exclusiva a VEJA. Na época, já circulavam rumores de que ele estaria preparando algo para questionar a lisura do processo eleitoral caso não fosse reeleito no ano seguinte. O cenário lhe era absolutamente desfavorável. O país havia acabado de sair de uma pandemia que deixou milhares de mortos, manifestantes ocupavam as ruas com faixas pregando intervenção militar, uma CPI acuava o governo no Congresso e Lula começava a despontar como candidato favorito. Perguntado sobre a possibilidade de uma ruptura institucional diante da conjuntura negativa, o então presidente foi categórico: “A chance é zero”. Admitiu, no entanto, que havia pressão “de algumas pessoas” para que ele atuasse “fora das quatro linhas”. Quase quatro anos depois, Bolsonaro, “o mito”, foi preso. Por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), ele está detido desde a noite da última segunda-feira em sua residência, num condomínio que fica a dez quilômetros do Planalto, e também impedido de receber visitas, à exceção dos familiares, proibido de usar as rede.
Bolsonaro é o quarto ex-presidente preso desde a redemocratização do país — uma nódoa na história republicana brasileira. Acusado de tramar um golpe de Estado, ele é suspeito de tentar obstruir a Justiça para inviabilizar a conclusão do processo que pode levá-lo definitivamente à cadeia por um longo período. No domingo 3, durante uma manifestação no Rio de Janeiro, o senador Flávio Bolsonaro ligou para o pai, que já estava proibido de sair de casa nos fins de semana, e pediu para que ele mandasse uma mensagem aos seus apoiadores. “Boa tarde, Copacabana. Boa tarde, meu Brasil. É pela nossa liberdade. Estamos juntos”, disse o ex-presidente. A declaração foi gravada em vídeo e postada nas redes sociais do filho. Moraes entendeu que o ex-presidente desrespeitou as medidas cautelares que haviam sido impostas uma semana antes e decretou a prisão domiciliar. “A participação dissimulada, preparando material pré-fabricado para divulgação nas manifestações e redes sociais, demonstrou claramente que (Bolsonaro) manteve a conduta ilícita de tentar coagir o STF e obstruir a Justiça”, justificou o magistrado em sua decisão.
A prisão do ex-presidente inflamou seus apoiadores e ampliou uma escalada de tensão política provocada por uma mistura de interesses que não deveriam andar juntos. Depois da decisão do ministro, deputados oposicionistas ocuparam o plenário da Câmara e ameaçaram só sair de lá depois que fosse pautado o projeto de anistia ampla, geral e irrestrita aos condenados pelo 8 de Janeiro. O mesmo aconteceu do outro lado do Parlamento. Senadores ligados ao ex-presidente também ocuparam o plenário e prometeram obstruir os trabalhos até que fosse colocado em votação, entre outras coisas, o pedido de abertura de processo de impeachment contra Alexandre de Moraes — impasse que acabou contornado.
Os Estados Unidos, que já haviam aplicado um tarifaço sobre produtos brasileiros em retaliação à “perseguição” que estaria sendo promovida contra Jair Bolsonaro, insinuaram que novas medidas punitivas podem ser anunciadas contra “quem auxiliar ou encorajar o comportamento” do ministro. O governo americano também havia enquadrado Moraes na chamada Lei Magnitsky, que prevê o bloqueio de bens, contas bancárias e ativos do alvo da sanção em instituições que operem com dólar. Após o decreto de prisão, o Departamento de Estado disse que o ministro está arrastando o país para uma “ditadura judicial”
Observaram que a ordem de prisão era juridicamente confusa e, por se tratar de uma medida grave e de altíssima repercussão, deveria ter sido comunicada previamente aos demais juízes da Primeira Turma, responsáveis pelo processo. Além disso, avaliaram que a medida, além de exagerada, era desnecessária, porque Bolsonaro será julgado em breve por golpe de Estado. Publicamente, no entanto, Moraes continuou recebendo apoio irrestrito, como fez o decano do STF, Gilmar Mendes, ao afirmar que “o Brasil teria se tornado um pântano institucional não fosse a ação de Moraes”. A defesa de Bolsonaro recorreu contra a ordem de prisão, mas o pedido ainda não havia sido julgado até o final da tarde de quinta, 7. Na retomada dos trabalhos do Supremo, Moraes disse, com uma certa dose de ironia, esperar que este semestre “será de tranquilidade”. O ministro não mencionou a atuação casada de Trump e Bolsonaro — e nem precisava. A todos com quem conversou sobre a prisão domiciliar do ex-presidente, reafirmou que a decisão de encarceramento foi correta e que qualquer eventual reticência soaria como desmoralização. Na sequência, deixou ainda mais claro: com ou sem pressão dos Estados Unidos, o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro está agendado para começar no dia 2 de setembro.
A decisão de prender Bolsonaro pode acelerar a disputa pelo espólio político do capitão, que está inelegível e assim deverá permanecer. Apesar de sua situação, o ex-presidente continua “dono” de uma fatia enorme de apoiadores. Cerca de 20% do eleitorado brasileiro, segundo o Datafolha, votaria em um candidato que simplesmente tivesse o sobrenome Bolsonaro. Pessoas próximas ao capitão afirmam que, diante disso, ele não desistiu de lançar a própria candidatura à Presidência no ano que vem, mesmo sabendo que ela será impugnada, para depois efetivar o vice como titular. Uma das opções para essa vaga seria o deputado Eduardo Bolsonaro. Ele quer a candidatura, mas perdeu parte do cacife político nas últimas semanas. Autoexilado nos Estados Unidos desde o início do ano, o parlamentar passou a ser investigado como principal articulador da suposta tentativa de obstruir a Justiça e, assim como o pai, corre o risco de ser preso caso volte ao Brasil. No PL, que classificou a prisão de Bolsonaro como “vontade de calar uma boa parte da população brasileira”, o presidente da sigla, Valdemar Costa Neto, não esconde de ninguém a preferência pelo nome de Michelle
Ao longo dos quatro anos de governo não foram poucas as vezes em que Jair Bolsonaro teve certeza de que sua prisão ou de um de seus filhos era iminente. Em momentos de tensão, chegou a discutir como ministros militares reagiriam para blindá-lo do que considerava um ponto de não retorno nas relações com o Judiciário. O ex-presidente, sabe-se lá exatamente com que intenções, dormia com uma pistola carregada debaixo do travesseiro. Um ministro do STF contou a VEJA ter sido procurado em várias oportunidades por enviados do então presidente, que tentavam obter alguma informação sobre os boatos que se multiplicaram quando o conflito entre o Planalto e o Supremo começou a se intensificar no final de 2021. Nessa época, Bolsonaro já estaria pavimentando o caminho do golpe, ao contrário do que dissera anteriormente. O plano, de acordo com as investigações, teve início com o ataque à credibilidade das urnas eletrônicas e incluía a desqualificação do STF e, caso a derrota eleitoral se confirmasse, o impedimento da posse do vencedor e a manutenção do então presidente no poder. A manobra, que agora pode render a Bolsonaro mais de quarenta anos de prisão, foi frustrada por falta de apoio militar, de acordo com a PF.
O Brasil teve seis presidentes eleitos desde a redemocratização do país, em 1985. Dois deles — Fernando Collor e Dilma Rousseff — foram afastados por processos de impeachment. Incluindo Jair Bolsonaro, agora são quatro os ex-ocupantes do Palácio do Planalto que foram enviados à prisão após o fim dos respectivos governos. Não é uma estatística da qual se pode extrair algo virtuoso. Pelo contrário: ela envergonha e macula a imagem da política e dos políticos em geral. Collor teve seu mandato interrompido pelo Congresso em 1992, depois de revelado que ele e a família levavam uma vida de luxos financiados por empresas e empresários que prestavam serviços ao governo. Sem ser alcançado pela Justiça, o ex-mandatário retornou a Brasília anos depois como senador, movido pela mesma compulsão do passado. Em 2015, a Polícia Federal descobriu que ele havia recebido 20 milhões de reais de propina de empresários que tinham contratos na Petrobras. Condenado a oito anos e dez meses por corrupção, o ex-presidente, o ex-presidente, com problemas de saúde, cumpre pena em regime domiciliar desde maio passado, em um luxuoso apartamento no litoral de Maceió.
As mesmas investigações que levaram Collor à prisão enredaram outros dois expresidentes. Também acusado de receber propina de empresários que prestaram serviços ao seu governo, Lula foi condenado em 2017 a nove anos e seis meses por corrupção e lavagem de dinheiro. O atual presidente ficou preso durante 580 dias. Dois anos depois, em 2019, Michel Temer, que substituiu a petista Dilma Rousseff após o impeachment, foi igualmente acusado de corrupção e teve a prisão preventiva decretada. Ele ficou detido durante seis dias num batalhão da Polícia Militar em São Paulo. Os dois ex-presidentes, depois, tiveram seus casos anulados pelo Supremo Tribunal Federal por irregularidades processuais, o que não afasta a infâmia da situação. O julgamento de Jair Bolsonaro pela trama golpista começa no próximo mês. Apesar das pressões, nada indica que o capitão escapará da devida punição, o que lhe garantirá um lugar de destaque nesse indecoroso panteão como o terceiro ocupante do cargo mais importante do país a ser julgado, condenado e preso. Uma tragédia indelével da nossa história.
Utilize o formulário abaixo para comentar.