O novo embate de decisões entre os ministros do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio e Dias Toffoli (atual presidente da Corte) teve como saldo a manutenção da prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula Silva e outros mais de 150 mil presos - além de um aprofundamento do desgaste do Poder Judiciário.
Para juristas ouvidos pela BBC News Brasil, o episódio contribui ainda mais para o descrédito da Suprema Corte, já abalada por outros conflitos entre ministros, num processo que fragiliza a democracia brasileira.
Logo após Marco Aurélio suspender com uma liminar a prisão de condenados em segunda instância antes do trânsito em julgado (encerramento de todos os recursos nas cortes superiores) horas antes do recesso do Judiciário, pedidos de intervenção no Supremo entraram nos temas mais comentados do Twitter.
Entre as hashtags mais usadas nas redes sociais na tarde de quarta-feira estavam #STFVergonhaNacional, #IntervençãoNoSTF e #UmCaboUmSoldado - essa última em referência à declaração do deputado federal Eduardo Bolsonaro (filho do presidente eleito, Jair Bolsonaro) de que bastaria "um cabo e um soldado" para fechar a Corte. A fala gerou forte reação durante a eleição presidencial, inclusive do decano do Supremo, ministro Celso de Mello.
Já a hashtag #LulaLivre, comemorando a decisão de Marco Aurélio, liderava os trending topics (tópicos mais comentados) do Twitter.
O ex-presidente poderia ser beneficiado pela medida do ministro. Ele está preso há oito meses por ter sido condenado em segundo grau por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do tríplex de Guarujá (SP).
Na noite de ontem, contudo, Toffoli acatou recurso da Procuradoria Geral da República e derrubou a decisão de Marco Aurélio.
Juristas ouvidos pela BBC News Brasil se dividiram sobre a correção jurídica das decisões de Marco Aurélio e Dias Toffoli. Eles concordaram, porém, que desgaste gerado é negativo para a Corte.
A subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen, coordenadora da Câmara Criminal da Procuradoria-Geral da República (PGR), destacou que liminar de Marco Aurélio contrariava decisões prévias do plenário do Supremo autorizando a prisão após segunda instância desde 2016. Na sua leitura, esse tipo de iniciativa individual acaba colocando em descrédito a Corte e fragiliza a segurança jurídica do país.
"É uma Corte, eles têm que se comportar como um colegiado. O Tribunal é respeitado na medida em que observa as próprias decisões colegiadas. Quem perder, tem que respeitar, porque amanhã vai ser o contrário (quem perdeu em outra questão pode não respeitar também)", afirmou Frischeisen.
'Mais um capítulo na crise'
Para a constitucionalista Eloisa Machado, professora da FGV Direito SP, a decisão de Marco Aurélio tem que ser vista dentro de um contexto de uma série de decisões controversas tomadas pela Corte por causa dos anseios gerados pela Operação Lava Jato.
Ela cita, por exemplo, a incoerência do plenário STF ao afastar o então presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha em 2016, mas no ano seguinte manter ativo o mandato do senador Aécio Neves, ambos investigados por corrupção.
No caso da autorização da prisão após segunda instância, lembra a professora, a questão virou uma grande briga no Supremo no início deste ano.
De um lado, ministros que ficaram derrotados em 2016, quando a Corte decidiu em placar apertado de 6 a 5 permitir o cumprimento da pena antes do esgotamento dos recursos, passaram a cobrar um novo julgamento da matéria depois que o ministro Gilmar Mendes anunciou ter mudado de posição.
De outro lado, ministros que votaram pela autorização da prisão antecipada ficaram contra um novo julgamento porque consideram que decisões do plenário não podem ser revistas em prazo tão curto.
Integrante desse grupo, a ministra Cármen Lúcia, presidente do STF até setembro passado, se recusou a pautar novamente a matéria. Já o novo presidente, Toffoli, não quis marcar julgamento polêmico durante as eleições e agendou o caso para abril de 2019.
As ações que tratam do tema, de relatoria de Marco Aurélio, terão que ser analisadas pelo plenário de novo porque o julgamento de 2016 teve caráter provisório. Ele justificou a liminar concedida ontem, no último dia de funcionamento da Corte antes do recesso que se estende até janeiro, devido à demora para que as ações voltassem ao plenário. Em entrevista à agência Reuters, ele acusou a ministra Cármen Lúcia (presidente da Corte até setembro) e Toffoli de manipularem a pauta de julgamento.
"A crise já estava instalada no Supremo. Essa decisão é mais um capítulo nesse cenário de desgaste no qual o próprio Supremo se colocou ao responder de maneira excepcional, fora do direito, a vários assuntos da Lava Jato", acredita Machado.
Para a força-tarefa da Lava Jato, a possibilidade de prisão após segunda instância é importante para combater a impunidade e estimular criminosos a firmarem acordos de delação premiada. Já os que criticam o cumprimento antecipado da pena argumentam que a Constituição só permite que uma pessoa seja considerada culpada e presa após o esgotamento de todos os recursos jurídicos.
"Eu acho que a decisão de Marco Aurélio está constitucionalmente adequada no seu conteúdo", afirma a professor da FGV, que é contra a prisão após a condenação em segunda instância.
"Agora, que a forma (como ele tomou a decisão) revela essa disputa interna e uma estratégia de fazer isso na véspera do recesso, eu não tenho a menor dúvida", reconhece.
Impopularidade é problema?
Diante da avalanche de ataques ao Supremo nas redes sociais, o professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Rafael Mafei ressalta que os ministros da Corte não devem ter receio de tomar medidas impopulares, pois é papel do Supremo proteger princípios constitucionais e direitos de minorias, mesmo quando contrariem a maioria da população.
Ele observa, porém, que a forma como Marco Aurélio tomou a decisão de suspender a prisão após condenação em segunda instância fragiliza o STF e alimenta a perda de autoridade da Corte.
"A constante impressão que o Tribunal dá de que os seus ministros batem cabeça, que não respeitam as decisões (uns dos outros), é muito ruim", afirma.
Segundo ele, a Constituição não garante "poderes absurdos" aos ministros individualmente.
"A Constituição dá muito poder ao STF, mas ela fala de um órgão formado por onze pessoas que vão atuar em conjunto. É como se fosse uma junta médica operando. Vamos supor que cada médico que pega no bisturi desfaz o que o outro fez: o paciente vai morrer", critica.
Ministro pode derrubar decisão de ministro?
Ao conceder a liminar no último dia de funcionamento da Justiça antes do recesso, Marco Aurélio criou um constrangimento para Toffoli. Isso porque o normal no STF é que ministros não podem derrubar individualmente decisões de seus colegas.
Na tarde de ontem, o ex-presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp disse à BBC News Brasil que seria "um desastre institucional" Toffoli derrubar a decisão de Marco Aurélio - o que acabou se confirmando à noite.
Já Eloisa Machado, da FGV, ressaltou que não há legalmente previsão de recurso contra liminar de ministro concedida em ação direta de constitucionalidade, caso da liminar de Marco Aurélio.
Toffoli, porém, decidiu derrubar a decisão por considerar que a decisão do colega teria sérias consequências. Ele ressaltou também que o julgamento definitivo da matéria já está pautado para abril.
"Tem-se, portanto, que a admissibilidade da contracautela pressupõe, entre outros aspectos legais, a demonstração de que o ato impugnado possa vir a causar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública", escreveu o presidente na decisão.
Para a subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen, Toffoli pôde derrubar a liminar de Marco Aurélio porque ela ia contar decisão prévia do plenário da Corte.
"Não é uma situação normal", resumiu.
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