Gatos são animais majestosos. Parecem saber de sua prodigiosa natureza e vivem a ‘brincar de esfinge’. Meus parentes felinos são como uma extensão familiar. A perda desses bichos de estimação é dolorosa.
Coquinho, por exemplo, entrou em minha casa há alguns anos. Já bem adulto. Surgiu no portão, chamei-o e ele veio se chegando com a docilidade dos siameses e seus olhos azuis. Não sei de onde veio. Apareceu e foi entrando. Ficando. Mostrando-se um bicho de boa índole sem radicalizar na questão da territorialidade.
Impôs uma convivência perfeitamente pacífica com os outros felinos que já habitavam minha casa. “Será que é macho ou fêmea?”, indaguei-me quando chegou de mansinho. Olhei para suas partes recreativas e vi dois coquinhos. Ficou-lhe o nome na hora.
Já chegou velhão e já faz um ou dois anos que se torna cada vez mais ‘pepé’. Fica em locais estratégicos da casa como se fosse um bicho empalhado. Nem o pelo farto esconde mais sua magreza. Anda meio surdo e quando dorme, parece que treina para morrer. Às vezes deita-se próximo e de frente para a parede, como as crianças ficavam de castigo antigamente.
Tenho dois bichinhos bakairi de madeira em casa – uma tartaruga e uma paca (ou filhote de anta, sei lá) – que de vez em quando coloco perto de Coquinho, só pra ele ter companhia. Coquinho, nos últimos dias, parecia se aproximar mais e mais do seu encontro marcado com a indesejada.
No último sábado a ressaca me obrigou a ir até a farmácia. Era um dia de neosaldina. Chego ao portão e, na calçada em frente de casa, lá está um belo siamês endurecendo a mercê das moscas. “Poxa Coquinho, tinha que morrer justamente neste sábado de dor de cabeça?”, sentencio. Mas, respeito os bichos de estimação e ritualizo a partida deles.
Voltei até a cozinha e peguei um saco de lixo preto. Fúnebre. Acomodei Coquinho nele e torei para as cercanias do cerrado próximas ao meu periférico bairro. Numa quebrada, com o coração, além da cabeça, me doendo, deposito Coquinho e cubro-o com pedras. Nenhuma lágrima me sobrou. Só tristeza cinza. Cinza é também um pouco a cor dos siameses.
Onze e trinta da manhã. Solão na cachola, finalizo a breve e solitária cerimônia da viagem de Coquinho. Passo na farmácia, compro minha neosaldina e tomo com Coca-Cola. A dor de cabeça já vai passar, mas Coquinho continuará doendo na sua ausência mais um tempinho. Aviso a mulher da morte de Coquinho, o que lhe provoca uma interjeição muda de sofrimento.
O filho acorda e deita-se na rede da varanda dos fundos. Também é informado que Coquinho já não está mais entre nós. Há um silêncio vazio na casa. Coquinho era gente boa, não enchia o saco de ninguém.
“Êeee pai,... mentiroso!”, diz o filho, sem motivo aparente. “Olha o Coquinho aqui”. E revejo Coquinho pescando pedacitos de ração no prato dos gatos. A tristeza recente foi-se embora e minha cabeça também já não dói.
Coquinho continua andando furtivamente pela casa, que nem um fantasma esquálido. ‘Pepé’ toda vida. Coquinho vai morrer, eu sei.
Biografia
Lorenzo de Jesus Miranda Falcão nasceu em 1958, em Niterói. Reside em Cuiabá desde 1970, cidade onde adentrou-se nas atividades culturais. Desde os anos 1980 vem atuando nas artes, como jornalista e também acumulando experiências em literatura, teatro, cinema e música. Nos últimos três anos tem se dedicado mais à literatura e, em 2018, foi eleito para a Academia Mato-grossense de Letras.
Desde 2010 está à frente do site tyrannus melancholicus (http://www.tyrannusmelancholicus.com.br), espaço referência no jornalismo cultural de MT, notadamente, na literatura. Em 2018, junto com três amigos escritores, criou o selo editorial Arcada (https://www.leiaarcada.com/), com foco em autopublicações.
Suas letras estão presentes em inúmeras coletâneas. Individualmente, já lançou as seguintes publicações: "Motel Sorriso" (2002 - prosa - edição do autor), "dIFERENTE" (2005 - poesia - edição do autor), "Mundo Cerrado" (2011 - poesia - Entrelinhas Editora), "Duplex - concurso interno de contos", com sua saudosa esposa Fátima Sonoda (2018 - prosa - Editora Carlini & Caniato), e "Distribuidora Falcão" (2019 - poesia - Arcada).
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