Oferto este conto ao nobre Barbeirinho, o especialista da Barbearia Tesoura de Ouro e ao barbeiro Manuel Cesário, um dos primeiros barbeiros delmirenses.
*Conto inspirado numa das histórias de José Amancio, Dedé
O barbeiro corta o cabelo de um moço, mas seus ouvidos estão atentos ao cantarolar esmerado do seu coleirinha, que pula dentro da gaiola enfeitada. Há alpiste e água limpa em compartimentos novos de plástico, mesmo assim, reconheço, está longe de tornar-se um paraíso. A barbearia é pequena e agradável. Na parede vejo fotos de gente bonita da novela. Num banco alongado, desses de pau, acomodam-se dois senhores esperando a sua vez. Eu, sentado ali, percebo que o cantar do passarinho disputa com o ruído agudo da tesoura e o burburinho da rua, lá fora.
Em poucos minutos, um senhor estranho nos aparece à porta. Ele tira o chapéu de feltro e põe sobre o peito. Talvez ele tenha uns sessenta anos, mas, ao olhar e ouvir o coleirinha, seus olhos parecem rejuvenescer. Em seguida, ele nos observa desconfiado.
— Boa tarde, meus amigos. A quem pertence esse passarinho cantador?
Num gesto rápido, o barbeiro interrompe o corte de cabelo, cruza os braços e o encara:
— Sou eu mesmo, o dono. — diz, bastante aborrecido — Não vendo nem troco. Digo logo.
— É que eu ia te ofertar um bom dinheiro... — Insiste o senhor estranho contraindo seu chapéu de feltro escuro com as duas mãos.
— Não vendo nem troco! — rebate o barbeiro e o encara mais uma vez.
— Olhe, se senhor quiser eu pago 300 cruzeiros. Mais da metade do meu salário.
Neste momento, olhamos todos em silêncio para o barbeiro.
— Homem, eu já disse que não! Eu fico nervoso quando alguém insiste no meu coleirinha! Eu não vendo, não. Obrigado pela oferta, mas eu não vou vender.
O senhor estranho põe seu chapéu de feltro na cabeça e pigarreia sem nos encarar. Retira-se em silêncio, cabisbaixo, mas, ainda assim dá uma olhava firme para o coleirinha. Em seguida, ouço apenas seus pigarros pausados, que diminuem conforme se afasta para longe de nós, descendo pela rua.
O barbeiro acalma-se e uma paz resplandece em seus olhos. Já não está ofegante. Ele retoma o corte de cabelo do moço, como se nada houvesse acontecido. Nós todos, porém, discutimos brevemente o acontecido. O barbeiro parece nos ouvir. Na verdade, agora ouve-se apenas o arranhar agudo e pequeno da tesoura sobre a cabeleira do moço. Assombrado, eu suspeito o pior. Rapidamente dirigimos nossos olhares ao coleirinha e vemos uma cena que jamais esqueceremos — dentro da gaiola enfeitada, coitado, como um bichinho empanado, o coleirinha estava teso e de cabeça para baixo, agarrado ao pau central da gaiola. Ele estava petrificado e muito pequeno, como uma bola que esvazia-se. Vi que seus olhos estavam opacos. A cena nos entristecia muito.
O barbeiro põe as mãos na cabeça, e eu pude notar seus olhos cheios de lágrimas.
— Meu coleirinha, oh, Santa Mãe! — ele bradou —. Aquele homem lançou mal olhado sobre o meu bichinho...
Os dois senhores sentados arregalavam os olhos com as mãos na cabeça. Mas, lembrei-me de que poderia haver um remédio para aquele mal. Eu estava razoavelmente certo disso.
À porta, ajuntaram-se quatro ou cinco jovens curiosos.
O coleirinha petrificado jazia de cabeça para baixo. O barbeiro choroso abriu a portinha da gaiola e quis pegar o passarinho, mas desistiu do gesto.
— Conheço um homem que pode resolver essa tragédia! — exclamei com segurança.
— Me diga quem é, por favor, homem! — disse o barbeiro enxugando um fio lacrimoso que escorria do canto do olho.
— Suba ali, alguém, à Rua Tiradentes. Lá mora um senhor, numa casinha pintada de azul, depois do Bar. É conhecido por Seu João Rezador. Todo mundo sabe onde é.
Um jovem dos que estavam à porta disse: “Eu sei quem é Seu João Rezador!... Pode deixar que eu vou lá chamá-lo!”. E saiu-se não dizendo mais nada; apressou os passos, eu vi, subindo à rua (corria tanto que os pés batiam na bunda).
Quase dez minutos depois, chega-nos Seu João Rezador. Ofegante e suado, a camisa de chita aberta e um rosário azul e comprido no peito. Ele traz na mão três pequenos ramos verdes de vassourinha. De imediato aproxima-se da gaiola, e em gestos de mão, tange os ramos para cima, para baixo e para os lados; cochicha discretamente ao ouvido do coleirinha semimorto: “shioushual, sfishuaaa, shiusuáuu, saaanta, sim, deusducéu, ceussiá, shuaiashoiu, shauashuans, amém...”.
O coleirinha inflar-se e estremecem-se as asas, como se tomado de um forte arrepio. Se ergue vivaz e instantaneamente a cantoria recomeça. Parece que até a manhã torna-se mais iluminada.
— Oxente, barbeiro... olha aí o teu coleirinha cantando novamente!
— Estou vendo, meu amigo! Graças a Deus!
O barbeiro infla os pulmões, admirado. Paralisado de felicidade, está a tesoura aberta e sua mão direita erguida acima do ombro. Imediatamente vai até a gaiola e a retira do gancho, fica por ali, fazendo um bico com os lábios, imitando o chilrear do coleirinha.
Seu João Rezador quebra os ramos de vassourinha, joga-os no lixeiro e em seguida aprecia a beleza do passarinho. "Entende a paz que o bichinho inocente traz” — eu pensei.
Acho que em virtude da emoção, ao contemplarmos o passarinho cantando, vivaz, não percebemos aberta a portinha da gaiola, e, antes que avisássemos ao barbeiro, coitado, absorto com o milagre, o coleirinha, num belo salto, pulou para fora e voou para bem longe, até amiudar-se todo naquele azul imenso de céu.
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