Há um vento abrandador, que chamamos de “Mourisco” — vem de longe, mas adquire persona somente a partir do campanário da Pedra Velha (do nascer do Sol até à borda do campo de futebol, perto do açude). Em seguida, “Mourisco” adentra o pequeno bosque de algaroba da antiga Fábrica, desliza sinuosamente entre os ninhos de Anu-preto, Coleirinha e Lavadeira, e segue abençoando, por sobre a Igreja Nossa Senhora do Rosário, para enfim desembocar no portão amplo da casa de Mayk. Durante a Festa de Outubro, o “Mourisco” circunda também a roda-gigante, trazendo debaixo do braço o cheiro doce de “Maça do amor” e de sorvete de groselha, espalhando-o por todo o bairro Eldorado. Obviamente Mayk Oliveira está atento à dadivosidade arejada do “Mourisco”, que adentra à varanda, fazendo lugar de descanso entre as plantas e flores diversas da sua matriarca. E o poeta entende bem das boas-novas que o “Mourisco” traz, por isso escreve uns versos e alguma prosa.
O poeta Oliveira é um observador atendo do cotidiano. Tem a sorte da Feira Livre como vizinhança. Durante os sábados pode capitar muita coisa do que se passa entre as pessoas, carroças de mãos, frutas, verduras e condimentos. Observa os indigentes como quem olha para santos. Vê nos abastados a sorte grande, e algo de verve comportada, eu penso. No cerne desse contraste socioeconômico, o poeta retira daí uma ironia fina, quase imperceptível aos não-iniciados, como no poema “Minha casa” —
Minha casa recebe aos
domingos,
famintos a esmo
Tantos vindos e instalados
que faltam migalhas a nós
mesmos
Um rico a pechinchar
recobre o sobrebolso
— um punhado de torresmo
Nosso entrevistado disse que é nascido Delmirense, da safra de 1984. Usa por vezes o pseudônimo de Antônio Oitibó, e quando, entre um cálice de vinho e outro, sente aquecido o arcabouço, diz para os amigos — “Faço o mesmo serviço do Lineu. Me surpreendo e aprendo, como historiador de formação. Me emocionou com sambas, folks, blues e rocks. Arranho um violão. No underground literário, dou umas cacetadas na língua portuguesa, lendo e escrevendo, e quando dá, vejo o Flamengo, ou o Brasil jogando”. Disse ainda que neste percurso, escreveu três livros de poemas, um romance e um livro de contos, desde o ano 2000. Publicou-se alguns dos seus versos na revista italiana Utsanga, na Revell (revista de estudos literários da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul/UEMS) e na Revista de Educação da Universidade Guarulhos (UNG-Ser). Quando perguntamos para onde vai, durante suas caminhadas, ele nos diz: “Vou na caminhada da evolução do Para Onde.” Ambientalista de espírito. Poeta maldito pela potência da vontade. Foi ele que lembrando-se emocionado do nosso saudoso Torinha escreveu o belo poema “O homem dos portões caiu” —
O velho guarda-chaves está sem sua cabeça
Foi atropelado no passeio de bicicleta
Quanto tempo ficará sem jogar?
Do dominó ainda se lembrará?
Suas pernas castigadas e furiosas pressionam
pedais astrais
Seu signo é de elemento terra
As luas não entraram em conluio
Não há combinação nem registro
Absurda e grande tolice; desconchavo
Suas súplicas vinham-lhe do âmago
Matreiro e desterrado
Exilado em declinado logradouro
Os portões choram sem fôlego
A minha terra esputa a memória
Rumina frágil e desdenhosa
Atrai as vespas das velas
Destilado da alma
Os encarecido sentimentos
Torinha esteve por perto, durante a juventude de muitos de nós. Contribuiu com seus bons conselhos — a palavra certeira de u honesto e íntegro. E a partir da sua inesquecível receptividade, do seu tratamento humano, nos sentíamos humanizados, visto que anos atrás, a condição de jovem periférico era ainda terrível. Torinha não passará. Vive para sempre, tal como Elvis Presley, Raul Seixas, Ronaldo Macarrão, e outros dos nossos. Logo, tão humano assim, e demasiado amigável, pensamos, não há modo mais nobre de lembrá-lo senão pela poesia..
Diálogos —
Estávamos conversando, esses dias, sobre pessoas do bem, muito embora não se enquadrem às convenções. São uma espécie de profetas urbanos. Sem citar nomes, você teria alguma impressão?
Estão sempre ligados à loucura, os caras estão sempre ligado a coisas exotéricas, ou possuem uma falta muito grande, o cara tem uma falta, uma coisa moral, o cara tem um vício muito forte, o cara bebe bastante, ou joga bastante, ou ver coisas, geralmente predomina um vício para que este possa dá humanidade ao cara, ou a pessoa, personagem que possui uma ligação divina, espiritual, telúrica, mágica. Geralmente os mágicos têm uma falta no passado. As pessoas geralmente tendem a se sensibilizarem a se ligarem quando se voltam para dentro, e esse “se voltar para dentro” eleva bastante as pessoas. Nós temos isto a todo momento, de estar conectado a todo momento — eu creio nisso — a todo momento a gente está conectado, mas é necessário fazer alguns exercícios. Geralmente esses exercícios sempre estão ancorados a situações limites: isso tem a ver com a vida, quando a vida está por um fio, quando o vinho está para acabar (e só temos água) não tem mais vinho, o que exige uma situação de milagre, ou então quando da noite, no limiar do dia para a noite, ou o limiar da noite para o dia. São sempre questões mágicas, que a gente chama de milagre, de destino. São energias, como o pensamento direto, um pensamento esperto, como no subconsciente que é maior que o consciente, a gente não tem a dimensão do subconsciente mais ele trabalha sempre. Para finalizar esse papo aí — nós somos espíritos limitados pela carne. Somos espíritos, energia pura, vivendo uma jornada na matéria. Estamos limitados, como corpo físico só podemos nos locomover caminhando, fazendo força. Só podemos nos locomover se houver uma energia extra no mundo. Só nos comunicamos se entendermos os códigos. Só podemos desejar as coisas se for pessoalmente, mas alguns pequenos gestos do dia-a-dia nós emitimos energia o energia pura; quando damos a bênção a um filho, quando olhamos nos olhos, quando escutamos os pássaros, o vento. Ainda que isso possa parecer uma coisa um tanto clichê de se falar (e eu não tenho problemas com clichês). Porque justamente categorizar as pequenas dádivas, as pequenas coisa, isso nos afasta das grandes coisas, e há quem dia que Deus mora nos detalhes; há quem diga que o Diabo também mora. Estão lá, os seres que estão nos detalhes.
E qual a relação desse "pensamento transcendental" com sua poesia?
A poesia é como qualquer outra arte, uma forma de colocar alma nas coisa materiais. Nós como espirito vivendo uma “experiência de carne”, material, queremos mais do que tudo nesta vida transformar tudo o que a gente faz em coisas com alma. Objetos inanimados, a gente quer transformá-los, a gente quer transformar o dia, quer que o dia seja especial, quer dar a ele um toque especial, devido àquela coisa da finitude da gente. Quando a gente escrever um texto quer que esteja bem escrito, esteja bonito, que esteja coerente, que toque o outro. Mas que não precisa ser explicado, mas que fale pela energia dele. Como uma música em outra língua, que você não tem tanta fluência, quando você não tem precedente, mas você entende quando a música é de amor, você entende quando a música é triste. Não precisa necessariamente entender os códigos linguísticos e verbais, orais da canção. Você sabe que aquela música está transmitindo uma coisa. Então, o ato de escrever, o ato de compor, o ato de conversar, o ato de lecionar, o ato de levar a palavra, o ato de tirar palavras, seja este qual for, ele é carregado de significado espiritual. Então tem a ver, cara. A gente é intuído dessa necessidade de colocar a alma nas coisas. Então, é assim que a gente tem que ser. O meu propósito é esse. Que eu escreva, que eu componha (música), que eu converse, que eu seja edificante. Edificante, sempre. Até na tristeza você é edificante. Você dá um exemplo de como se dá a sua vivência. Exemplificar de que modo você poderia fazer melhor, de que modo acontece. Ou colocar como alternativa de você escolher, porque o poema nunca é fechado, o livro nunca e fechado, mesmo que você coloque o ponto final — há muito a dizer. As coisa que você não disse são muito importante. Então, perguntar o porquê ou o que o autor não falou, diz muito sobre o autor também. E eu acho que segue essa ideia, a ideia de escrever e colocar alma das palavras. Falar para o seu interior e ao mesmo tempo exteriorizá-lo, mas dizendo: “Olha! Tem alma! E essa lama necessariamente passa pela humildade, porque você se expõe.
Poderia continuar com esse conceito de humildade?
A humildade não é simples. Ser humilde não é simples, porque a gente nasce para se defender. E para se defender a gente usa muitos artifícios. Dentre eles a questão da arrogância, a questão de estar sempre em embate para garantir o seu lugar, para garantir a sua vez. Há quem diga, as pessoas mais experientes, num ditado popular que diz o seguinte: “farinha pouco meu pirão primeiro”. Porque se faz pirão com caldo e farinha. Então, se tem pouca farinha terá pouco pirão. Quando você tem assa premissa, da “pouca farinha”, você vai ficar sempre mais perto, para não faltar para você. Também está atrelado a isso: a humildade tem a ver com o bucho saciado ou não. Isso é metafóricos — o mundo é uma metáfora para o próprio mundo. A gente pode usar o mundo como metáfora para o próprio mundo. Ser humilde é você sentir-se saciado. Eu estou saciado! E saber que mesmo na dificuldade de seguir se saciando, achar que não se pode tirar a vez ou o mérito do outro por causa disso.
Percebe-se um significado muito forte de justiça em sua fala.
Porque eis outra grande questão: a gente lida com questões subjetivas que define quem somos. Tudo o que a gente faz na Terra está atrelado a esse ideal de Justiça. A gente vai evoluindo, evoluindo, dando alma à justiça. O entendimento que a gente tem de divindade, da questão humana, do espírito, da paz, da liberdade, da recompensa da justiça, a gente entende que mais do que ferir o outro é melhor não feri-lo. Por exemplo, se alguém me feriu, eu devo aprender com ele como não ferir outros, e ao mesmo tempo perdoá-lo.
Mais sobre o Poeta:
https://periodicosonline.uems.br/index.php/REV/article/view/3138/pdf
http://revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/article/view/1044/pdf
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