A americana Sarpoma Sefa-Boakye descobriu que queria ser médica aos nove anos de idade. Nascida no sul da Califórnia, filha de imigrantes ganenses, ela conta que, em sua primeira viagem à África, para um funeral na terra natal dos pais, ficou comovida com a pobreza.
"Pensei que uma maneira de ajudar seria me tornar médica", diz Sarpoma, 39, à BBC News Brasil.
Quando chegou a hora de ingressar no curso de Medicina - que nos Estados Unidos é oferecido como pós-graduação - Sarpoma se inscreveu em universidades americanas, mas acabou escolhendo um destino menos usual: a Escola Latino-Americana de Medicina (ELAM), na capital cubana, Havana.
Segundo ela, o que pesou na decisão foi a possibilidade de concluir o curso sem dívidas, já que o governo cubano oferece bolsas de estudos aos alunos americanos.
"Eu pensei: 'será que vou conseguir pagar um curso de Medicina nos Estados Unidos, que custa entre US$ 200 mil e 300 mil?'", lembra.
Sarpoma faz parte de um grupo de 170 médicos americanos formados pela ELAM, a maioria deles negros ou latinos.
Pode soar estranho que cidadãos de um país rico como os Estados Unidos participem de um programa voltado a jovens de comunidades de baixa renda. Mas nas faculdades americanas, negros e latinos representam menos de 6% dos graduados em Medicina.
"A maioria dos estudantes negros e latinos não tem condições de pagar pelo curso de Medicina nos Estados Unidos", afirma à BBC News Brasil a médica Melissa Barber, formada pela ELAM em 2007 e coordenadora do programa que seleciona alunos americanos para escola cubana, ligado à IFCO (Fundação Interreligiosa para Organização Comunitária, em português), em Nova York.
Como contraste, 47% dos americanos formados pela ELAM são negros e 29%, latinos. Em troca do curso gratuito, eles se comprometem a atuar em áreas carentes de serviços médicos quando voltarem ao seu país.
Histórico
Fundada em 1999 para oferecer educação gratuita a jovens de nações pobres da América Central e do Caribe atingidas pelos furacões Mitch e Georges, a ELAM reúne hoje estudantes de 124 países.
Os primeiros americanos chegaram em 2001, depois que líderes do Congressional Black Caucus, o grupo formado pelos congressistas negros dos Estados Unidos, visitaram a ilha e relataram a carência de médicos em algumas áreas habitadas por minorias em seu país. O líder cubano na época, Fidel Castro, ofereceu bolsas de estudo a americanos de baixa renda.
A seleção dos candidatos fica a cargo da IFCO, instituição que se opõe ao embargo econômico imposto pelos Estados Unidos a Cuba. A decisão final cabe à ELAM.
"A cada ano, recebemos em média 150 pedidos de inscrição. Destes, em torno de 30 acabam realmente se inscrevendo, e 10 são enviados a Cuba", diz Barber.
O curso dura seis anos, dois a mais que nos Estados Unidos. Há ainda um ano adicional, no início do curso, dedicado a aulas preparatórias com foco em ciências e espanhol.
Apesar da tensão nas relações entre os dois países, os americanos formados pela ELAM garantem que o programa deixa política de fora. "Algumas pessoas pensam que os estudantes vão ser usados como ferramenta política por ambos os lados. Mas isso não é verdade. Estamos lá apenas para estudar Medicina", diz Sarpoma.
Injeções no primeiro dia
A bolsa inclui acomodação em dormitórios, três refeições diárias na cafeteria do campus, livros em espanhol, uniforme e uma pequena ajuda financeira mensal.
Os estudantes são alertados sobre as acomodações "espartanas", diferente do que estão acostumados em seu país, e dificuldades como falta ocasional de energia e pouco acesso à internet. Mas o que mais surpreendeu Sarpoma foi o método de educação, focado em prevenção e interações com os pacientes desde o início.
"No primeiro dia de aula, já aplicamos injeções. Nos Estados Unidos, as escolas usam atores para fazer o papel de pacientes. Em Cuba, não. Você aprende na clínica."
Barber destaca o aspecto comunitário do sistema cubano. "Equipes formadas por médico e enfermeiro são responsáveis por uma pequena área geográfica, conhecem aquela comunidade. Os pacientes vão à clínica, e os profissionais também vão de casa em casa."
Ao fazer o diagnóstico, os médicos são encorajados a considerar elementos biológicos, psicológicos e sociais. "Não são fatores isolados. Você olha o retrato completo, o que está acontecendo na vida desse paciente, incluindo fatores sociais e ambientais, que pode provocar esses sintomas", diz.
"Se a pessoa precisar de mais cuidados, há policlínicas, com todas as especialidades", afirma, observando que o paciente só vai ao hospital caso essas duas primeiras etapas não sejam suficientes para resolver o problema.
Barber compara esse sistema ao americano, onde muitos não têm plano de saúde. "Nos Estados Unidos, muitas vezes quando chegam a consultar um médico é caso de emergência, não mais de prevenção."
Medicina familiar
Para exercer a profissão nos Estados Unidos, os médicos formados em Cuba precisam ser aprovados em uma série de exames, assim como seus colegas formados em escolas americanas. Também devem completar um programa de residência médica nos Estados Unidos.
"Eles passam pelos mesmos exames e etapas que médicos formados nos Estados Unidos. A qualidade da educação que recebem é comparável com os programas em universidades americanas", diz à BBC News Brasil a presidente da National Medical Association (Associação Médica Nacional, ou NMA, na sigla em inglês), Doris Browne.
Fundada em 1895, a NMA é a mais antiga associação de médicos negros dos Estados Unidos e tem entre seus objetivos melhorar a qualidade dos serviços de saúde para minorias e comunidades carentes no país.
Segundo Browne, são poucos os médicos formados nos Estados Unidos que se dedicam a atenção primária, o que faz com que haja falta de profissionais nessa área.
Apesar de ser o país com maior gasto per capita em saúde, os Estados Unidos ficam atrás de Cuba em alguns indicadores de saúde. Em 2016, segundo o Banco Mundial, a taxa de mortalidade infantil (número de mortos a cada mil nascidos vivos) era de 4 em Cuba e de 6 nos Estados Unidos.
Há ainda grande disparidade relacionada a raça e dependendo do Estado. Segundo o Centers for Disease Control and Prevention (Centros de Controle e Prevenção de Doenças, ou CDC, na sigla em inglês), agência do Departamento de Saúde americano, de 2013 a 2015 a taxa de mortalidade infantil para filhos de mulheres brancas variava de 2,52 na capital, Washington, a 7,04 no Arkansas. Entre mães de origem hispânica, a taxa ia de 3,94 em Iowa a 7,28 em Michigan. Entre negras, de 8,27, em Massachusetts, a 14,28 em Wisconsin.
Nesse contexto, a presidente da NMA diz que o trabalho prestado pelos médicos formados em Cuba, que atendem áreas carentes e minorias, é "extremamente importante".
"Precisamos de mais médicos de família atuando nessas comunidades", salienta Browne.
Pouco tempo com pacientes
Segundo Barber, do IFCO, mais de 91% dos americanos formados pela ELAM atuam em atenção primária. Sarpoma, que concluiu o curso em 2009, é médica de família em San Diego, na Califórnia. Ela também trabalha com a organização Birthing Project USA, que tem projetos ao redor dos EUA e do mundo com o objetivo de reduzir taxas de mortalidade infantil e materna.
Entre as dificuldades de adaptação que enfrentou ao voltar aos Estados Unidos, Sarpoma cita o pouco tempo com os pacientes. "No primeiro dia de residência, fiquei uma hora com um paciente. Não percebi que todos estavam esperando do lado de fora. Me chamaram de lenta. Mas eu estava simplesmente fazendo meu trabalho. É preciso conversar com o paciente", relembra.
Nos Estados Unidos, o tempo médio que um médico gasta com cada paciente é de 15 minutos. "É muito frustrante", confessa Sarpoma.
Ela também diz que recebeu pouco treinamento para lidar com alguns problemas que são mais comuns nos Estados Unidos do que em Cuba, como overdoses e ferimentos a bala. Outra diferença é o uso de testes laboratoriais e de imagem, bem maior nos Estados Unidos do que em Cuba, onde costumam ser usados apenas para complementar o diagnóstico.
Barber admite que há quem desconfie de médicos treinados em outros países. "Há algumas pessoas com essa mentalidade, com a ideia de que são diferentes, e por isso não tão bons como os formados nos Estados Unidos", afirma.
"Mas nas comunidades em que atuam, são sempre bem-vindos. Até porque vão aonde a maioria dos médicos americanos não vai."
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