Foi a frase de uma jornalista na televisão, dizendo que o século 20 teve "mais mudanças do que qualquer outro", que fez com que o historiador britânico Ian Mortimer ficasse com a pulga atrás da orelha. Será mesmo?
Para descobrir a resposta, ele se dedicou a catalogar, quantificar e estudar o impacto das principais mudanças dos últimos mil anos de História ocidental e como elas podem apontar caminhos para o futuro.
O resultado da investigação foi o livro Séculos de Transformações (Ed. Record), recém-lançado no Brasil. Mas uma das principais observações de Mortimer a respeito das lições que as mudanças na sociedade nos deixaram só apareceu meses depois.
"O perigo de notícias falsas e mentiras é maior hoje do que era no passado. Acho que a verdade vai se tornar muito mais importante à medida que o século 21 avança", afirmou à BBC News Brasil, em entrevista por telefone.
"Na Idade Média, por exemplo, a capacidade de disseminar notícias falsas era relativamente limitada porque os governos só falavam com nobres e com outros governantes, através de seus mensageiros. Com o advento da impressão, isso se torna um problema maior e quando aparecem as estradas de ferro e os jornais, você começa a afetar as vidas de muitas pessoas. Mas, hoje em dia, notícias podem afetar o mundo inteiro muito rápido. A chance de que elas criem guerras é grande."
Mas a mesma Internet que ajuda a espalhar informações incorretas também ajuda a esclarecê-las. No passado, isso era bem mais difícil e demorado. Não seria mais fácil criar uma guerra na Idade Média por um motivo falso do que é hoje?
"As pessoas na Idade Média iam à guerra por motivos mais pessoais. A religião, por exemplo, não causava guerras, como muitos dizem. Ela era usada para justificar a guerra. E essas guerras afetavam mais diretamente os nobres do que as outras pessoas", explica Mortimer, que é membro da Real Sociedade de História da Grã-Bretanha e autor de mais de 20 livros de história, incluindo "guias para viajantes do tempo" da Idade Média e de outros períodos na Inglaterra.
"Mas hoje, vemos o presidente dos EUA negando o aquecimento global e o Kremlin negando o envolvimento de agentes russos no envenenamento de pessoas no Reino Unido. Essas coisas aumentam muito a tensão e podem ter consequências muito sérias para a humanidade. Não havia nada desse tipo nem na Idade Média nem no início da Idade Moderna."
'Mania de Antiguidade'
A escolha por examinar a história do Ocidente se justifica, segundo Mortimer, porque foi a sociedade europeia que "espalhou seu estilo de vida pelo mundo".
"Na minha cabeça, o que é mais notável no século 20 não é tanto o que aconteceu aqui na Europa. Por exemplo, eu uso um terno que não é muito diferente do que o do meu tataravô há 100 anos, vivo numa casa como a dele e faço coisas semelhantes às que ele fazia. Mas o impressionante é que pessoas na China, no Brasil, também estejam usando esses ternos e vivendo nessas casas. O estilo de vida do Ocidente se tornou um estilo de vida global", diz.
A escolha do autor, no entanto, deixou de fora civilizações como a chinesa, que inventou o papel, o papel moeda, a pólvora e muitos conceitos e objetos que revolucionaram as sociedade.
"Precisamos entender que as invenções pontuais, tanto as de dentro quanto as de fora da Europa, não foram o que realmente mudou o mundo. É o uso que aquela invenção acaba tendo e suas aplicações", argumenta o historiador.
"O exemplo que eu dou sobre isso é a bússola, que foi criada no Ocidente no século 12, mas não foi usada para a exploração internacional até o século 15. Só quando a necessidade apareceu dentro da sociedade é que a invenção se tornou realmente poderosa. O papel moeda só passou a ser realmente aceito como moeda de troca quase mil anos depois de sua invenção."
É essa percepção da mudança como algo mais lento e profundo que falta ao ensino de História nas escolas, de acordo com Mortimer.
Para ele, há uma "mania de Antiguidade" nos currículos, que faz com que os professores se concentrem mais em fatos, datas e personalidades do que em mostrar aos alunos como a humanidade chegou até aqui.
"É muito difícil ensinar crianças pequenas a entender a mudança, então gostamos de falar dos romanos, do Renascimento e do século 19, mas não mostramos como os séculos acabam com coisas que achávamos que durariam para sempre."
Quando mudamos mais?
O século 20 viu o surgimento da bomba atômica, do avião, da internet, dos celulares e outras tecnologias. Mas elas seriam comparáveis, por exemplo, com o momento em que os espelhos foram inventados, no século 16, e permitiram que nossos ancestrais finalmente soubessem exatamente qual era sua própria aparência? Ou com o fim da escravidão, no século 19?
Afinal, se uma pessoa de hoje entrasse em uma máquina do tempo e fosse parar em algum momento nos anos 1900, ela poderia se virar bem. Os idiomas, em geral, eram parecidos com o que se fala hoje, era possível se locomover com trens ou bicicletas e boa parte da comida também seria familiar. Mas se essa pessoa vai parar nos anos 1800, as coisas seriam bem diferentes.
Para comparar o quanto cada século representou em termos de evolução social, Mortimer examinou o avanço que cada período conseguiu em categorias como ter as necessidades básicas de alimentação e abrigo atendidas, ter segurança em períodos de guerra e de paz, ter saúde etc.
O veredito, após um ano de pesquisa, acabou confirmando a afirmação da jornalista na TV, e que levou o britânico a essa jornada pelas transformações humanas. O século 20 foi o que testemunhou mais mudanças na maioria das categorias.
Mas algumas conclusões surpreendem: o século 16 teve a maior queda em índice de assassinatos - o que fez com que as pessoas estivessem mais seguras nos locais onde viviam, em tempos de paz. Por outro lado, o mesmo século teve um aumento agudo da intolerância e do preconceito de raça, de religião e de gênero.
A importância das pequenas comunidades
Para Ian Mortimer, o trabalho de comparar séculos em relação a suas mudanças é importante para aprendermos com erros e acertos do passado. Mas a maior lição tirada da História pode ser algo bem mais simples: o valor das comunidades.
"Os transportes rápidos como os trens, por exemplo, destruíram comunidades rurais e pequenas cidades, porque tudo começou a acontecer ao redor da cidade grande. Mas se voltássemos a enfatizar as comunidades e nos interesses locais, teríamos mais pessoas ajudando-se mutuamente a crescer", diz.
"Foi assim, com a colocação de médicos de pequenas cidades, que a sociedade se medicalizou no século 17, e passou a ter uma atitude diferente em relação à saúde, que ia além de apenas rezar para Deus. Pode-se dizer o mesmo sobre as polícias comunitárias. Elas ajudam mais as pessoas a saberem como se comportar do que uma força policial impessoal que vem de fora interferir."
A humanidade, no entanto, tem a mania de só aprender essas lições quando já é um pouco tarde para alterar os rumos da História, diz o britânico. Por isso, olhar para a passagem do tempo também teve o efeito colateral de diminuir o seu otimismo sobre o futuro.
"Não acho que teremos um bom futuro, mas acho que encontraremos uma maneira de fazer o mesmo que fazemos há gerações. Vamos continuar brigando, espalhando doenças, tendo um sistema de classes com pessoas muito ricas e pessoas muito pobres. Tenho certeza que a vida vai continuar se virando como faz há séculos", afirma.
"Em certo sentido, isso é ser um pouco otimista. A natureza humana não vai mudar, mas tenho fé que pelo menos os padrões de vida que muitos de nós tiveram pelos últimos 100 ou 200 anos ainda serão os mesmos para nossos tataranetos. Talvez até um pouco além deles."
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