"Às 12h30 do dia 4 de maio de 1976, o presidente Ernesto Geisel desembarcou do trem real britânico, procedente do aeroporto de Gatwick, na estação Victoria, em Londres. Acompanhado da esposa Lucy Geisel e da filha Amália Lucy, o general brasileiro deu três passos sobre a plataforma e cumprimentou a rainha Elizabeth II da Inglaterra", descreve o pesquisador Geraldo Cantarino ao iniciar o ainda inédito Geisel em Londres (Editora Mauad X), seu quinto livro baseado nos arquivos do Governo britânico sobre o período do regime militar brasileiro (mais sobre eles aqui). "Essa foi a primeira visita de Estado de um presidente brasileiro ao Reino Unido, e foi considerada uma das mais polêmicas daquele período na Inglaterra", conta Cantarino, um dos vários brasileiros que tentam recuperar a história das décadas de 1960, 1970 e 1980 do Brasil em arquivos estrangeiros.
A reportagem do EL PAÍS conversou com pesquisadores que têm vasculhado os arquivos do Reino Unido, França e da antiga Tchecoslováquia para descobrir o que os documentos diplomáticos e de serviços de inteligência ainda têm a dizer sobre esse período turvo da história brasileira — os militares alegam ter destruído todos os documentos da época. No livro que está para lançar, Cantarino investiga como o constrangimento britânico de lidar com um regime acusado de torturas e execuções não foi o bastante para impedir a visita com honras de Geisel. Os grandes contratos no ambicioso programa de desenvolvimento nacional em curso no Brasil falaram mais alto, mas "a diplomacia britânica percebeu que precisaria de fortes argumentos para justificar o convite e evitar um desgaste do Governo de Sua Majestade junto à opinião pública", diz o jornalista. Segundo ele, estão começando a ser liberados documentos britânicos sobre a Guerra das Malvinas. E é de olho nesses registros que o historiador João Roberto Martins Filho, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), parte nos próximos meses para a Inglaterra.
“Houve muita tensão entre o Brasil e a Inglaterra naquele momento. Para eles [britânicos], era uma questão fundamental derrotar os argentinos, e o Brasil teve uma atitude dúbia, disse que era contra, mas apreendeu um avião inglês e deu ajuda à Argentina por baixo do pano”, diz Martins Filho, que descobriu recentemente documentos britânicos de 1978 que sugerem uma tentativa do Governo brasileiro de abafar um caso de superfaturamento na compra de equipamentos para construção de navios vendidos ao Brasil. Os brasileiros se negaram inclusive a receber uma indenização de 500.000 libras (3 milhões de libras ou 15 milhões de reais nos valores atuais).
Em maio, o pesquisador Matias Spektor canalizou as atenções do país para os arquivos estrangeiros ao descobrir um documento do Departamento de Estado norte-americano que sugere que a cúpula do regime autorizou execuções durante a ditadura. "O escândalo provocado por esses documentos é proporcional ao nível de segredo que existe dentro do Brasil. Se não existisse segredo no Brasil, já teríamos encontrado tudo aqui", diz Martins filho.
Governo Thatcher
O professor da UFSCar pesquisou com mais detalhes nos arquivos britânicos o período que vai de 1969 a 1976 e, agora, pretende se concentrar no Governo de Margaret Thatcher (1979-1990), que pega o final da ditadura brasileira. "Há documentos classificados para serem liberados após 100 anos", comenta. O prazo pode ser alterado, contudo, caso as pessoas que poderiam ser prejudicadas pela divulgação do material tenham morrido. A morte, em 2014, do jornalista Rodolfo Konder, testemunha do assassinato sob tortura do colega Vladimir Herzog, liberou um dos documentos analisados por Martins Filho, autor, entre outros, do livro Segredos de Estado - O Governo Britânico e a Tortura no Brasil (editora Prismas, 2017) — na obra, ele revela que o MI5, serviço de inteligência britânico, investigou se havia algum exilado brasileiro que poderia colocar a vida de Geisel em risco durante a visita e informou ao Brasil que uma delas, chamada Helena Bocaiúva, não tinha armas em casa.
Os arquivos britânicos são liberados após um período de 30 anos, desde que não tenham implicações para a segurança nacional do país ou prejudiquem pessoas vivas. Nos Estados Unidos, estão disponíveis desde 2015 os registros feitos até 1976; na França, o prazo pode varias de 25 a 50 anos de sigilo. Foi nos documentos norte-americanos que Carlos Fico, professor do departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), descobriu em 2008 o plano de contingência que previa apoio militar norte-americano ao golpe de 1964 em caso de imprevistos. Para ele, os documentos do Governo João Figueiredo (1979-1985) "serão ainda mais chocantes" do que os revelados neste ano. “O Geisel não tinha relação muito orgânica com a chamada comunidade de segurança de informações. Mas seu sucessor era um general muito vinculado com as ações da repressão, tinha sido chefe do SNI [Serviço Nacional de Informações] e continuaria muito fortemente vinculado a esse grupo”, diz.
Exilados na França
Pesquisador dos arquivos norte-americanos, Fico orientou nos últimos anos uma tese de doutorado feita a partir dos arquivos de inteligência da França. O trabalho, realizado por Paulo César Gomes, está nas mãos da editora Record, que planeja lançar o livro no início de 2019. Para o pesquisador, o mais interessante dos documentos analisados por ele é a ambiguidade entre o discurso oficial e o conteúdo das correspondências sigilosas. "As autoridades francesas percebiam que havia um regime de exceção no Brasil, mas fez-se a opção para que isso não afetasse as relações", diz o pesquisador. Isso pode ser sentido por meio do monitoramento dos exilados brasileiros em território francês. O Serviço Nacional de Informações (SNI) era informado sobre todos os brasileiros que recorriam ao consulado francês.
A Prefeitura de Polícia de Paris guarda dossiês sobre personalidades como o intelectual pernambucano Josué de Castro, o jornalista Samuel Wainer e o ex-presidente Juscelino Kubitschek “Não consigo provar que houve uma sistemática de colaboração [entre os governos da França e do Brasil], mas houve colaboração em relação a figuras específicas”, diz Gomes, destacando as tratativas entre os países para a viagem do ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes à França — o cunhado do político brasileiro, Pierre Gervaiseau, precisou assumir um compromisso perante as autoridades francesas de que Arraes "adotaria um comportamento discreto durante sua permanência na cidade [Paris], abstendo-se de qualquer tipo de declarac?a?o".
A pesquisa mostra ainda como as autoridades brasileiras trabalharam para melhorar a imagem do regime na Europa e a contratação do francês Georges Albertini pelo SNI para auxiliar no monitoramento de brasileiros no exterior e publicar artigos elogiosos à ditadura na França. Os registros trazem ainda informações sobre o economista Celso Furtado e o secretário de imprensa do presidente João Goulart, Raul Ryff, que também aparece na pesquisa de Mauro Kraenski nos arquivos da antiga Tchecoslováquia, a primeira feita no contexto brasileiro até hoje. Em parceria com o tradutor tcheco Vladimír Petrilák, o paranaense descobriu nos documentos do bloco soviético que Ryff, identificado como um dos principais conselheiros de Goulart, foi usado como "figurante" — potencial agente — pela StB (sigla para "Segurança Estatal"), o serviço de inteligência tchecoslovaco. A relação com Ryff durou até o golpe de 1964, mas a StB atuou pelos interesses soviéticos no Brasil de 1952 a 1971, de acordo com os documentos expostos pelo livro 1964 - O elo perdido (Vide Editorial, 2017).
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