Nos últimos anos, o cinema deu ao Brasil alguns filmes que ajudam a pensar a história social do país. Entre tantos filmes emocionantes e marcantes, destaca-se um em particular intitulado “Que Horas Ela Volta?” (2015). Escrito e dirigido por Anna Muylaert, conta a história da empregada doméstica Val, interpretada pela atriz Regina Casé.
O enredo desse longa gira em torno de uma família de classe média alta, constituída por um casal e um filho. Nesse arranjo, conhecemos a Val, a empregada doméstica, uma nordestina que se viu obrigada a deixar a família e a cultura em busca de melhores condições sociais e de renda.
No decorrer da trama, vamos conhecendo novos personagens e entendendo as relações humanas estabelecidas naquele contexto instável que oscila entre o íntimo e o exterior, pois na intimidade ela ‘é da família’, quando exposta a outros é rebaixada e devolvida à efetiva condição de serviçal. Nessa construção frágil entre pertencer ou não à família, nota-se um esboço ilusório construído em torno da fragilidade emocional e afetiva na qual vivem milhares de empregadas domésticas longe de sua família.
Não tão distante, a história definitivamente nos mostra que essas relações adquirem funções diversas e traz à tona alguns discursos e reflexões sobre “os que mandam e os que obedecem”, ou alguns posicionamentos azedumes com discursos ácidos, como, por exemplo: “ponha-se no seu lugar”. Essas marcas discursivas trazem à luz alguns contextos históricos que não gostaríamos de reviver.
A mais breve alusão aos vestígios da história nos transporta para a Antiguidade, às servidões prestadas aos senhores feudais, na Idade Média, à criadagem da nobreza até o período da Revolução Industrial e do capitalismo. A mais ínfima ideia de retornar a este período torna-se a cada dia uma possibilidade, pois não raros os momentos vemos, ouvimos e conhecemos casos em que muitos trabalhadores vivem em situação análoga à escravidão.
Não raro também, empregadas domésticas são expostas aos riscos, quando flagradas limpando janelas de edifícios altos, sem nenhuma segurança ou proteção. Não tão raros os noticiários denunciam empresas e patrões que mantêm seus funcionários em cárcere privado ou ouvimos alguns discursos enraizados de descontentamento, como: “Todo mundo indo para a Disneylândia, empregada doméstica indo para Disneylândia, uma festa danada”. Esse comentário, carregado de preconceito de classe, foi feito pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, o qual costuma culpar as pessoas, principalmente as mais pobres, pelo fracasso da política econômica da qual ele, sim, é o principal responsável nos últimos quatro anos.
Com falas assim, remontamos à história que o Brasil do século 21 herdou do passado colonial, imperial e escravista uma profunda desigualdade social que não foi resolvida, ou seja, o racismo estrutural vive. Esses contextos, quando combinados, refletem em uma má remuneração e até pouco tempo esta categoria não tinha direitos reconhecidos.
No entanto, é preciso considerar que há alguns mecanismos na sociedade brasileira que prezam por impedir que certos grupos ou categorias ascedam socialmente, ou seja, o trabalho formal ainda é o meio de ascensão, uma oportunidade para desconstruir os vieses raciais, nos quais muitos nordestinos, negros e empregadas domésticas foram encaminhados e colocados aos postos inferiores mais precarizados.
Destoar à realidade e criar uma estética aceitável dentro dos roteiros cinematográficos com narrativas sempre foi o papel de diretores e cineastas, entretanto, quando vemos nossa realidade, nos damos conta que não é romantizada, como se apresenta nas telas do cinema, a partir daí, passamos a questionar e nos enxergar. Com isso, causamos um desconforto ou um descontentamento social, político e cultural.
Diante disso, quando, nos dias de hoje, as pessoas insistem em diminuir ou retirar direitos com falácias chulas, como ‘ponha-se no seu lugar’, use dos seus argumentos que foram construídos ao longo da história para refutar e desconstruir as arbitrariedades desse mundo, ou seja, não podemos permitir que heranças coloniais, medievais e históricas se perpetuem através das futuras gerações.
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