Eram 6 horas da tarde e X, de 16 anos, não apareceu na fila para marcar o ponto na hora da saída. Os companheiros de trabalho o encontraram com uma corda enroscada no corpo atada a um equipamento que estava no andar inferior para ser içado ao piso onde ele estava. Tentaram reanimá-lo, sem sucesso. Era estagiário de uma empresa numa cidade do Sul. Quinze dias antes, na mesma região, outro adolescente, também de 16, estava operando uma empilhadeira quando ela tombou sobre ele. O acidente foi fatal, assim como outros envolvendo crianças e adolescentes que trabalham no Brasil.
Por mês, mais de três morrem em atividades laborais no país. De 2007 a maio deste ano, foram 415 mortes de menores em ambientes de trabalho, 22 de crianças com menos de 13 anos.
No ano passado, 42 crianças e adolescentes morreram, e pelo menos 15 são feridos diariamente em trabalhos perigosos e insalubres que são proibidos para menores de 18 anos, de acordo com o Sistema Nacional de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, compilados pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Os serviços de saúde são obrigados a notificar acidentes de trabalho. Os casos com crianças e adolescentes vêm aumentando sistematicamente desde 2020, quando se inverteu a tendência de queda havia começado em 2013.
Até mesmo no emprego formal, com o menor atuando como aprendiz, com carteira assinada, há mortes. Foram quatro no ano passado, de jovens de 14 a 17 anos, e mais de sete acidentes com feridos por dia. O número de casos por ano caiu de um ápice de 3.722 em 2013 para 1.460 por ano em 2019. Mas voltaram a crescer em 2020 e, em 2024, saltaram para 5.629.
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Sequelas
Para a médica sanitarista Élida Hennington, da Fiocruz, nos anos marcados pela pandemia, a partir de 2020, houve aumento do trabalho infantil, o que pode explicar a maior incidência de acidentes. O empobrecimento acabou empurrando crianças para atividades laborais, ela cita, além da redução das políticas de combate ao trabalho infantil:
— A maior participação em trabalhos perigosos e insalubres e maior exposição ao risco de acidente podem ter contribuído para o aumento desses eventos. Por mais que possam ter melhorado os registros de acidentes, isso não explicaria essa alta forte desde 2019.
Luis Henrique Dias Silva sofreu um acidente de moto, ao fazer a última entrega no interior do Ceará, quando tinha 16 anos — Foto: Edilson Santos
No Brasil, o trabalho é proibido até os 13 anos. É liberada a ocupação dos 14 aos 16 somente como aprendiz. A partir dos 16, o jovem é contratado com restrições: não pode atuar com máquinas, nas ruas, na agricultura ou à noite. Plenamente liberado, só aos 18.
O braço direito de Luis Henrique Dias da Silva, de 18 anos, não se move mais desde que se acidentou, aos 15, quando começou a fazer entregas de moto no interior do Ceará. Trabalhava das 17h às 22h de segunda a sexta e até meia-noite nos fins de semana.
— Era minha última entrega do dia. Estava numa estrada de terra, mas tinha muita poça d’água e resolvi voltar para a rodovia. Ouvi o barulho de uma carreta atrás de mim. Virei para olhar, mas não tinha. Quando olhei para frente novamente dei de cara com uma vaca e não vi mais nada — lembra.
Ele conta que desmaiou ao menos quatro vezes durante o socorro. Quebrou a clavícula, um osso do pescoço e teve traumatismo craniano. Perdeu a mobilidade do braço. Ele havia parado de estudar logo que começou a trabalhar. Ficava muito cansado com a jornada dupla e queria juntar dinheiro para ir para a cidade dos avós. Hoje, vive em São Paulo, aposentado por incapacidade permanente:
— Não consigo mais trabalhar, mas voltei a estudar.
Daniel Arêa Leão Barreto, auditor fiscal do Trabalho no Ceará, tem reunido casos de crianças e adolescentes mortos ou feridos trabalhando.
— Um dos casos é a morte de um menor de 16 anos que a mãe deixou trabalhar, mesmo contra a vontade dela. Cinco dias depois que ele começou, ligaram para falar do acidente. Essas crianças estão na informalidade e são deixadas de lado — afirma o auditor, observando que, além da perda do filho ou filha, a família convive com a culpa. — Os pais tentam encarar como fatalidade, um desejo divino, foi a hora que Deus quis levar.
“A criança empurrava com a mão a carne dentro do moedor (num açougue), na porta de um mercado municipal aos olhos de todos, inclusive das autoridades”
— Roberto Padilha Guimarães, Coordenador de Fiscalização do Trabalho Infantil do MTE sobre menino de 10 anos
Consultados, mães e pais de jovens que se acidentaram no trabalho preferiram não dar entrevista. Dizem não querer reviver a dor da perda.
Os últimos números do IBGE, de 2023, mostram que há 1,6 milhão de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos em situação de trabalho no país. Em 2016, eram 2,1 milhões, com 346 mil entre os 5 e 13 anos. Mesmo com essa queda significativa, especialistas não veem chance de o Brasil cumprir o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS), das Nações Unidas, de erradicar o trabalho infantil este ano.
— Teríamos de acelerar 11 vezes a redução atual — afirma Élida Hennington, da Fiocruz.
“Há risco do ponto vista físico, cognitivo, com exposição à violência, esforço excessivo e no trabalho com máquinas e equipamentos que não são preparados para ela”
— Élida Hennington, médica e pesquisadora da Fiocruz sobre as consequências do trabalho precoce
Luísa Rodrigues, coordenadora do Núcleo de Combate ao Trabalho Infantil do MPT, diz que ficou mais difícil de alcançar as crianças que trabalham:
— Saímos de 5 milhões nos anos 2000 para 1,6 milhão no ano passado. Fica ainda aquele trabalho invisível, rural, doméstico. Mais difícil de ver e denunciar. Muitas vezes não entram nas estatísticas.
Letícia Nobre, médica da Vigilância e Atenção à Saúde do Trabalhador da Bahia, que extraiu os dados de morte do Sinan, aponta dois fatores para a alta dos acidentes de trabalho com menores: piores condições de trabalho, com empregos de baixa qualidade, e maior capacidade dos serviços de saúde de reconhecer casos.
— Há uma piora nos indicadores — avalia.
Trabalho mais inseguro
Segundo Viviane Forte, coordenadora de Segurança e Saúde do Ministério do Trabalho, nos registros da pasta, que só acompanham trabalhadores formais, os números de acidentes com menores também sobem. Foram 1.820 em 2023 e 2.439 em 2024, alta de 34% em um ano.
—Há descumprimento da legislação, falta de medidas de prevenção, a situação vem piorando em vez de melhorar. Os acidentes não aumentam por acaso, auditando as empresas, vemos que a situação é coerente com o aumento de casos.
Considerando todas as idades, o número total de acidentes de trabalho no Brasil foi de 700 mil em 2024, diz Viviane:
— Ficou estabilizado em 620 mil por dois anos, depois houve um aumento importante em 2023 e 2024.
“Essas máquinas são campeãs de acidentes de trabalho com criança e adolescentes. Outro complicador é que são famílias vulneráveis, muitas vezes os pais levam para trabalhar na fazenda e convivem com a culpa”
— Andréa Tannus, auditora fiscal do MTE na Bahia, sobre as forrageiras, campeãs de mutilação de menores no campo
Incapacidade permanente
No Brasil, mais de mil crianças e adolescentes ficaram com incapacidade total ou parcial para o trabalho desde 2007. Só no ano passado, foram 61 casos, cinco por mês. Desse total, quatro foram de incapacidade total permanente envolvendo duas crianças de 9 anos e dois adolescentes, de 16 e 17, de acordo com dados do Sistema Nacional de Agravos de Notificação (Sinan), compilados pela pesquisadora Letícia Nobre, da Secretaria de Saúde da Bahia
No Rio, a procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT), Elisiane Santos, investiga o acidente de um adolescente de 13 anos que perdeu três dedos ao usar uma máquina em uma padaria.
— A máquina de cilindro para esticar massa amassou os três dedos. Ele estava sem proteção numa máquina que não atendia às normas de segurança. Em nenhuma hipótese ele poderia estar ali, por se tratar de adolescente. Atendia no balcão, mas um empregado faltou, e ele foi deslocado.
Acidentes com máquinas
No campo, máquinas forrageiras que são usadas para triturar capim e galhos são as que mais vitimam as crianças. Andréa Tannus, auditora fiscal do Trabalho na Bahia, diz que houve ao menos três acidentes com mutilação de menores nos últimos anos:
— Essas máquinas são campeãs de acidentes de trabalho com crianças e adolescentes. Outro complicador é que são famílias vulneráveis, muitas vezes os pais levam filhos para trabalhar em fazenda e ainda convivem com a culpa.
“Já encontramos crianças em polo têxtil com jornadas de nove horas por dia. Encontramos uma criança manuseando uma lata de querosene e fogo, para queimar as pontas dos fios. Imagina o risco!”
Hoje, na Bahia, há dez procedimentos envolvendo investigação de acidentes com menores no trabalho. Um dos mais recentes foi na Região Metropolitana de Salvador. Um jovem de 16 anos estava trabalhando informalmente numa obra quando o material tocou na rede elétrica. O choque foi mortal.
— Acompanho ainda dois casos, de uma menina, de 12 anos, e um menino de 14, que tiveram os dedos decepados na forrageira — diz Andréa.
Coordenador nacional de Fiscalização do Trabalho Infantil da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho, Roberto Padilha Guimarães, diz que o risco do uso de mão de obra de crianças e adolescentes já começa nos equipamentos, cuja ergonomia é pensada para adultos:
— Os EPIs (equipamentos de proteção individual) são feitos para adultos, o que torna maior o risco de acidentes. Por mais que o adolescente tenha complexão física para o trabalho, está com o organismo em desenvolvimento, é muito mais vulnerável a acidentes.
Pelos números do IBGE, de 2023, há mais de meio milhão na faixa entre 5 e 17 anos em atividades perigosas no Brasil. Segundo Guimarães, foram retiradas 15.541 crianças e adolescentes do trabalho infantil, de 2017 até 2024. Somente este ano, já foram 1.537. E 86% delas estavam nas piores formas de ocupação infantil, mais expostas a acidentes e doenças do trabalho.
“A máquina de cilindro para esticar massa amassou os três dedos. Ele estava sem proteção numa máquina que não atendia às normas de segurança. Em nenhuma hipótese ele poderia estar ali”
São quase 3 mil crianças retiradas de atividades laborais anualmente pelo Ministério do Trabalho, que começou a atuar com um Grupo Móvel do Trabalho Infantil, nos moldes do que já existe para o trabalho análogo à escravidão, unindo várias instâncias para fiscalizar e realizando operações mais focadas em situações que concentram crianças e adolescentes.
— Já encontramos crianças em polo têxtil com jornadas de nove horas por dia. Encontramos uma criança manuseando uma lata de querosene e fogo, para queimar as pontas dos fios. Imagina o risco! — conta o coordenador.
Nessa operação, foram encontradas 301 crianças em 46 locais. Em outra frente, ele lembra ter encontrado um menino de 10 anos trabalhando num açougue, com moedor de carne:
— A criança empurrava com a mão a carne dentro do moedor, na porta de um mercado municipal, aos olhos de todos, inclusive das autoridades.
Efeitos no corpo
A médica Élida Hennington, da Fiocruz, alerta que as crianças têm menos massa muscular, seus ossos ainda estão em formação. O trabalho precoce pode atrapalhar o futuro delas:
— Há risco do ponto vista físico, cognitivo, com exposição à violência, esforço excessivo e no trabalho com máquinas não preparadas para elas. Ela lembra que um estudo da Universidade de Durham, no Reino Unido, de 2023, comprovou o efeito do trabalho no desenvolvimento infantil: os ossos dos menores trabalhadores estavam deformados, eram curtos, e eles mostravam sinais de doenças respiratórias.
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